Patrícia Rangel – doutora em Ciência Política

19 de março de 2015 Comente »
Patrícia Rangel – doutora em Ciência Política

Jornal Mulier – Outubro de 2013, Nº 117

Para Patrícia Rangel, o sistema político brasileiro ainda se mantém impermeável às demandas das mulheres por igualdade e é resistente às nossas conquistas

Mulier – Patrícia, por favor, conte-nos um pouco sobre você, suas origens e formação.

Patrícia Rangel – Sou mineira de Juiz de Fora, formada em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), mestre em Ciência Política pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e doutora na mesma área pela Universidade de Brasília (UnB).

Conheci os Estudos de Gênero e o feminismo na graduação e, desde então, este tem sido meu campo de atuação, tanto acadêmico quando militante. Fui professora da PUC-GO e do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e co-coordenadora do projeto de extensão Parlamento Jovem. Também colaboro com a Universidade Livre Feminista e o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), onde trabalhei de 2008 a 2010. No momento, faço pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP).

Mulier – Como vê a relação de brasileiras(os) com a política partidária e eleitoral?

Patrícia Rangel – Trata-se de uma relação complicada e distante, marcada pela desconfiança e pelo descrédito da população em relação aos partidos políticos e ao processo eleitoral. As pessoas simplesmente não se sentem representadas ou apoiadas por estas instituições. Contudo, não se trata de um problema novo (a Ciência Política estuda a chamada crise de representação há bastante tempo) ou exclusivo do Brasil.

Se observarmos os percentuais de filiação partidária e de presença em eleições em outras democracias do mundo, certamente encontraremos um quadro mais desanimador que o nosso. Só para se ter uma ideia, um estudo do cientista político Celso Roma com dados do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA) indica que o Brasil ainda é um dos países com uma das maiores taxas de comparecimento às urnas do mundo. Nas últimas eleições locais, a abstenção eleitoral chegou a 68% no Reino Unido (2012) e 61,5% nos Estados Unidos (2010).

Mulier – Passados alguns meses das manifestações sociais que reuniram milhões de pessoas em todo o Brasil, como analisa o fenômeno?

Patrícia Rangel – Honestamente, considero impossível analisar um fenômeno de tal magnitude sem o mínimo de distanciamento temporal. Admiro as(os) cientistas sociais que encararam o desafio de oferecer interpretações para as manifestações de junho (como algumas pessoas vêm chamando o fenômeno que não se limitou àquele mês), mas não me atrevo a arriscar um palpite, pois simplesmente ainda não sou capaz de compreender o que ocorreu.

Tenho lido trabalhos interessantíssimos sobre os protestos, dos quais destaco a publicação “Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil”, da Boitempo Editorial. Também tenho me posicionado de forma desconfiada em relação a análises muito assertivas e unidimensionais, que ignoram nuances importantes dessas movimentações.

Mulier – E por que a partir dessas manifestações o tema da Reforma Política tornou-se tão premente?

Patrícia Rangel – Porque a dramática insatisfação com as instituições políticas e a representação em si foi um dos aspectos centrais das manifestações, e talvez o único elemento comum a todos os grupos envolvidos de alguma forma nelas. O debate sobre a Reforma Política, que já vinha sendo encarado há muitos anos pela academia e por diversos movimentos sociais, inclusive o(s) feminista(s), ficou em voga por ser coerente com este momento em que as instituições são postas em xeque. Impossível não voltar a este debate se estamos repensando as formas de se fazer política no país, bem como suas incontáveis alternativas.

Mulier – Você defende a Reforma Política? Se sim, quais pontos considera fundamentais?

Patrícia Rangel – Sim, e me alinho a um ponto feminista sobre a Reforma Política, que não almeja somente democratizar a política institucional, mas transformar radicalmente o sistema político, para além da representação. Sobre os pontos fundamentais, propomos diversos mecanismos visando o fortalecimento da democracia direta, o fortalecimento da democracia participativa/deliberativa e o aprimoramento da democracia representativa (sistema eleitoral e partidos político).

No que se refere ao último ponto, o mais visado nos debates sobre Reforma Política, propomos: manutenção do sistema de representação proporcional para cargos legislativos, a adoção da lista fechada com alternância de sexo, a paridade da participação política entre mulheres e homens e a adoção de medidas coerentes com o propósito de garantir a participação de 50% de cada sexo, o financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais, a reserva de pelo menos 30% do tempo de propaganda partidária gratuita na mídia (paga com dinheiro público) para promoção da participação política das mulheres, afrodescedentes, indígenas, pessoas LGBT, jovens e portadoras(es) de deficiência.

Do mesmo modo, propõe-se destinar pelo menos 30% dos recursos do fundo partidário para a formação política e ações afirmativas dessas instâncias. Para conhecer em detalhes estas propostas, recomendo a leitura de uma publicação do CFEMEA organizada por mim em 2011: “Agenda Feminista para a Democratização do Poder na Reforma Política”.

Patrícia

Mulier – Um dos temas polêmicos da reforma é o financiamento público exclusivo de campanhas. Qual sua posição sobre o tema?

Patrícia Rangel – Sou a favor. Vigora atualmente no país o sistema misto de financiamento, formado por recursos públicos e privados. A consequência é que o sistema eleitoral brasileiro se sustenta no financiamento privado de campanhas eleitorais, favorecendo, de antemão, os grandes grupos econômicos e as candidaturas que dispõem ou “mobilizam” vultosos recursos financeiros, em muitos casos, a partir de práticas ilegais e escusas.

Segundo a especialista Teresa Sacchet, o país gasta em média três vezes mais que os outros países latino-americanos em campanhas para cargos legislativos federais. Somente a título de ilustração, nas eleições de 2002, os recursos do Fundo não cobriam nem 10% do total dos gastos das campanhas. Só quem tem muito dinheiro consegue se eleger. Os que possuem menos recursos, entre eles a maioria das mulheres candidatas, são desfavorecidos no processo. Desta forma, a dimensão financeira é destacada como um dos maiores obstáculos enfrentados por mulheres na competição política.

A adoção do financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais é fundamental para combater a privatização da política e a corrupção nos processos eleitorais, para assegurar condições mais igualitárias de acesso aos recursos e para restringir o poder de grupos econômicos, favorecendo a participação de segmentos que não detêm o poder econômico e estão politicamente excluídos, como as mulheres, afrodescendentes, indígenas, LGBT e jovens, entre tantos outros.

Mulier – Qual a função dos partidos políticos nos dias atuais?

Patrícia Rangel – Os partidos podem ter um papel muito mais importante no fortalecimento de processos democráticos. Por isso, a Reforma do Sistema Político deve garantir que os partidos sejam realmente espaços de debate político, democráticos, transparentes e representantes de segmentos da sociedade. Partidos não podem ter donos e devem ser dirigidos pelo conjunto de seus/suas filiados(as) e não apenas por seus/suas “dirigentes”.

Mulier – O que a Reforma Política tem a ver com a vida das mulheres?

Patrícia Rangel – Absolutamente tudo. Para a grande maioria das mulheres, a política institucional está inacessível. O sistema político brasileiro ainda se mantém impermeável às demandas das mulheres por igualdade, resistente às nossas conquistas, insensível às transformações que o feminismo operou na sociedade.

O espaço da representação política, além de ser exclusivo dos partidos políticos é, em sua quase totalidade, ocupado pelos homens brancos. E, até o momento, apesar dos conflitos, tem servido para reproduzir e manter os privilégios de gênero e raça, tendo também de ser transformado sob esta perspectiva. Excluídas do sistema político, nós, mulheres, inventamos muitas formas de fazer política, de fazer realizar nossas lutas, de pautar nossas reivindicações no debate público. Isso precisa mudar, e a Reforma Política é um dos caminhos para tal mudança.

O feminismo antir-racista tem feito uma crítica profunda à democracia liberal, superficialmente representativa e patriarcal, discordando que a questão da representação política e seu perfil sexista e racista sejam questões exclusivas dos partidos políticos e de alguns acadêmicos(as). Estamos convictas de que o poder primeiro, original, está na cidadania.

Mulier – Mais mulheres participando da política partidária e eleitoral é bom para a democracia? Por quê?

Patrícia Rangel – Este é um debate complexo, que envolve os conceitos de representação descritiva e substantiva, ou de política de presença e política de ideias, usando os termos de Anne Phillips.

Alguns/mas estudiosos(as), como Drude Dahlerup, indicam que a simples inclusão de mais mulheres (mais precisamente, de uma massa crítica feminina) faça diferença na política sim. Outros(as) autores(as), como Magdalena León e Jimena Holguín, radicalizam o ponto, argumentando que a eleição de certo número de legisladoras é, por si só, capaz de transformar a política institucional por meio da incorporação de temas relacionados às necessidades, direitos e interesses femininos, geralmente não contemplados por legisladores homens.

O movimento feminista, por sua vez, tende a considerar que não adianta só eleger mais mulheres, e sim mais mulheres com consciência de gênero, ou seja, com consciência de sua situação de marginalização e dispostas a fortalecer a solidariedade com base na ideia que a desigualdade é estrutural e todas as soluções para esse problema devem ser coletivas, e não individuais.

Seria preciso haver a combinação de uma política de presença (mais mulheres) com uma política de ideias (consciência de gênero, fim da desigualdade, aprofundamento da democracia).

Mulier – Como a sociedade tem contribuído para a Reforma Política? Qual sua opinião sobre iniciativas a exemplo da Lei Complementar de Iniciativa Popular da Ficha Limpa e a Iniciativa Popular para a Reforma do Sistema Político?

Patrícia Rangel – A sociedade civil organizada sempre contribuiu ativamente para o debate acerca da Reforma Política. Tive a oportunidade de acompanhar o trabalho da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, que se dedica, desde 2004, a refletir sobre uma reforma ampla e completa do sistema político, buscando apresentar soluções abrangentes e democraticamente radicais. A plataforma, inclusive, adotou perspectivas feministas, devido à presença no grupo de representantes do feminismo – a exemplo da Articulação de Mulheres Brasileiras, a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras, a Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, a Liga Brasileira de Lésbicas.

O resultado foi a Iniciativa Popular que busca reformar a política em suas diversas expressões, aproximando-se assim do ideal de sociedade democrática em que as pessoas não sejam limitadas ou marginalizadas por sua cor, religião, origem econômica ou sexo.

Mulier – Quais as principais dificuldades para a realização de uma Reforma Política efetiva no Brasil?

Patrícia Rangel – Por uma simples questão de redistribuição de recursos políticos. Há uma resistência absurda por parte dos donos do poder no Brasil, obviamente beneficiados pelo atual formato do sistema político e eleitoral. Por exemplo, na última reforma eleitoral (2009), os parlamentares se recusaram a aceitar nossa proposta de incluir o critério raça/cor nas fichas de candidatura do TSE, para gerar dados estatísticos sobre a participação de negras, negros e indígenas nas eleições, atualmente inexistentes. E qual o motivo? A consequência destas medidas seria a proposta de ações afirmativas com o objetivo de incluir estes segmentos sociais nos espaços institucionais. E, para eles entrarem, os donos do poder (leia-se homens, brancos e proprietários), ou uma parte deles, teriam de sair.

Mulier – Qual a relação entre democracia representativa e democracia participativa?

Patrícia Rangel – A democracia representativa somente poderá ser transformada por meio da justiça social, da democracia direta e da democracia participativa ou semi-direta, caracterizada pela coexistência de mecanismos da democracia representativa com outros da democracia direta.

Apesar do crescimento da participação popular, as instâncias de democracia participativa têm sido desvalorizadas como possibilidades reais de aprofundamento da democracia. Para o Estado – Executivo, Legislativo e, especialmente, o Judiciário –, prevalece a ideia de que o controle social representa uma ameaça ao poder. Ainda assim, o Brasil se tornou um exemplo mundial no desenvolvimento de ferramentas alternativas de participação. Em 1989, destaca a ONU, o Orçamento Participativo de Porto Alegre tornou-se um símbolo do controle social sobre a aplicação das verbas destinadas aos investimentos.

Um estudo elaborado a partir de dados do IPEA/DATA (2005) revelou que nos municípios com Orçamento Participativo os indicadores sociais apresentam melhores condições. Duas indicações para conhecer melhor o assunto são a Rede Brasileira de Orçamento Participativo e o Projeto Democracia Participativa do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Mulier – E como você vê os novos canais de participação como as redes sociais para uma maior participação democrática?

Patrícia Rangel – Novos espaços de participação são sempre necessários. A política brasileira precisa encarar o desafio de fortalecer a democracia por intermédio da ampliação dos mecanismos de acesso ao poder, com a garantia de equidade de gênero, raça e etnia. Espaços informais, como as redes sociais, têm uma lógica distinta da atual arquitetura de participação, formada por Conselhos e Conferências, que nem sempre dialogam entre si ou tencionam o sistema político representativo.

Em mecanismos governamentais, como o Orçamento Participativo, a participação popular é majoritariamente consultiva, setorizada, reproduzindo a fragmentação existente nas políticas públicas e o distanciamento das decisões econômicas referente à alocação de recursos públicos. Talvez a participação direta nas redes sociais contribua para nosso desafio de ampliar os espaços públicos de debate, a nossa capacidade de mobilização e de pressão política.

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