Vanessa Monteiro Cardoso – psicóloga e integrante dos projetos da Organização Humanitária Internacional Médicos Sem Fronteira

3 de março de 2013 7 Comentários »
Vanessa Monteiro Cardoso – psicóloga e integrante dos projetos da Organização Humanitária Internacional Médicos Sem Fronteira

Vanessa durante transmissão do programa de rádio em Hebron, na Cisjordânia, ao lado da tradutora. Foto: Arquivo pessoal

Jornal Mulier – Setembro de 2011, Nº 92

Segundo Vanessa, falta de infraestrutura em campos de refugiados é um dos principais problemas enfrentados pelas mulheres nos países onde trabalhou

Mulier – Conte-nos um pouco sobre você, suas origens e formação profissional.

Vanessa – Eu sou carioca, tenho 37 anos, moro no Rio de Janeiro. Sou formada em Psicologia Clínica, fiz pós-graduação em Psicanálise e sempre me dediquei ao estudo de línguas estrangeiras. Depois de cursar um MBA em Relações Internacionais e fazer seis meses de trabalho voluntário na África do Sul, senti-me mais preparada profissionalmente para me candidatar a uma vaga em Médicos Sem Fronteira (MSF).

Mulier – O que é a Organização Médicos Sem Fronteiras?

Vanessa – Médicos Sem Fronteiras é uma organização médico-humanitária internacional, nascida em 1971, na França. Leva ajuda a populações que sofrem as consequências de desastres naturais, conflitos armados, epidemias ou fome, além de assistência às chamadas doenças negligenciadas como a Doença de Chagas e a Doença do Sono. Outro objetivo importantíssimo de MSF é tornar públicas as situações que seus profissionais presenciam.

Mulier – O que a levou a trabalhar para a organização?

Vanessa – Eu assisti a um programa de TV, em que alguns profissionais de saúde falavam de um trabalho que iam fazer com MSF em Angola. Fiquei muito impressionada de pessoas deixarem tudo para trás para ir para uma região em guerra em prol de pessoas que nem conheciam. Eu só tinha 11 anos, mas fui fisgada por essa ideia ali. Mais recentemente, eu assistia a documentários, noticiários e tinha uma vontade imensa de estar do outro lado, nos campos de refugiados, nos hospitais. Ficar no sofá era muito incômodo para mim, eu ficava cada vez mais inquieta. A minha motivação, e tenho certeza que a dos meus colegas também, é a de cuidar do outro, não importa onde ele esteja.

Mulier – Quando, onde e por quanto tempo desenvolveu trabalhos da organização?

Vanessa – Com MSF já estive por seis meses em Hebron, na Cisjordânia (de março a setembro de 2010). Logo depois, também fiquei seis meses em Yambio, Sudão do Sul, o mais novo país do mundo (outubro de 2010 a abril de 2011). Mais recentemente, estive um mês em Benghazi, na Líbia (de maio a junho de 2011).

Mulier – Como é a rotina de trabalho e o dia a dia dos profissionais do MSF?

Vanessa – Nas regiões muçulmanas onde estive, Cisjordânia e Líbia, tínhamos somente um dia de folga, às sextas-feiras, o dia sagrado do Islã. Em Hebron, com a ajuda da minha tradutora, atendia os pacientes, crianças, adolescentes e adultos com problemas psicológicos provenientes dos conflitos armados na região. Eu também apresentava um programa de rádio local, que duas vezes por semana tratava de assuntos como depressão, ansiedade, stress. Já em Benghazi, o trabalho era, principalmente, relacionado à capacitação das equipes de saúde para detectar casos de estresse psicológico, fazer o acolhimento inicial e encaminhar, quando necessário, a um profissional local especializado. No Sudão do Sul, se não houvesse casos de emergência, o trabalho de aconselhamento psicológico era nos campos de refugiados ou deslocados internos e no hospital local.  Nas horas de folga, procurávamos fazer as refeições juntos, sair para conhecer a região sempre que possível, além de reservar também um tempo para nós, no quarto, sozinhos, para pensar, ouvir música, descansar.

Mulier – O fato de ser mulher influenciou em alguma coisa?

Vanessa – O fato de ser mulher, mesmo nas regiões islâmicas, em nada perturbou minha atividade profissional. Sempre fui respeitada. Além disso, MSF é uma organização muito reconhecida nesses locais, se você está representando a organização, recebe uma transferência positiva de imediato. O que acontecia em Hebron era que, como os atendimentos eram, em sua maioria, realizado na casa dos pacientes, sempre que uma figura masculina estava lá, eu a cumprimentava verbalmente, jamais apertando suas mãos. Raríssimas foram as vezes em que um paciente homem pedia para ter um psicólogo, um profissional masculino para atendê-lo. E essa era uma opção que ele teria.

Mulier – Como analisa a realidade das mulheres nas regiões onde esteve?

Vanessa – No Sudão do Sul, país devastado por uma guerra civil de 21 anos, conheci mulheres muito fortes, figuras de peso nas famílias ali. Muitas vezes eu as via caminhando distâncias inimagináveis. Carregavam baldes equilibrados na cabeça com raízes, água, grama, as meninas também, além do filho nas costas, bem seguro, num tecido muito colorido. Nunca deixei de pensar naquilo como uma das coisas mais incríveis que já vi. Pouquíssimas são as que trabalham fora. Normalmente, somente aquelas que haviam ido para países fronteiriços, fugindo da guerra, conseguiram ter uma boa formação. Quando voltaram, tiveram mais chances de ocupar uma vaga em cargos públicos. Há muitos casos de violência doméstica (como também na Cisjordânia). Por causa dos conflitos, os homens perdem o emprego. Sem uma atividade que lhes permita sustentar a família, a autoestima baixa vendo seu papel de provedor em risco, muitos começam a beber (bebidas que preparam artesanalmente). Voltam para casa, batem na mulher, nas crianças.

Mulier – Quais os principais problemas enfrentados pelas mulheres e as consequências psicológicas de viverem sob medo, inseguranças e dificuldades diárias?

Vanessa – Os campos de refugiados geralmente abrigam um grande número de pessoas e normalmente não têm boa infraestrutura. É preciso andar muito para pegar água e para usar as latrinas. Então, se uma mulher ou uma menina precisa usar uma latrina de madrugada, pode ser violentada sexualmente por um homem daquela comunidade e ninguém vai tomar conhecimento disso. Como, em geral, a sobrevivente se envergonha de expor a sua história pelo estigma que o estupro traz, quando a mãe ou o pai descobre, é porque ela começa a apresentar sintomas físicos e psicológicos. MSF tem agentes comunitários que levam essa questão à população para tentar quebrar o tabu e informar sobre a confidencialidade do atendimento médico e psicológico a essas pacientes. Na Cisjordânia e na Líbia, vi um número grande de mulheres afetadas pelo conflito armado e pela falta de liberdade de ir e vir.

Mulier – Gostaria de contar casos em especial de sua experiência de trabalho em outros países?

Vanessa - Sim. No Sudão do Sul, um dos trabalhos que fiz dizia respeito ao atendimento a crianças e adolescentes que haviam sido sequestrados por uma guerrilha. Eles arrasavam e saqueavam vilas, matavam homens e mulheres, sequestravam crianças para serem suas escravas sexuais, cozinheiras ou treinadas como seus soldados para invasão de outras vilas. Trabalhei no centro de acolhimento temporário que recebia quem fugia do cativeiro ou eram libertados. Ouvi muitas histórias de tortura, de crianças e jovens separados de suas famílias, fome, trabalhos pesados, alguns tiveram de matar, obedecendo a ordens de seus “superiores”. Quando o trabalho de aconselhamento psicológico da minha equipe terminou, vi alguns desses jovens no avião do Comitê Internacional da Cruz Vermelha porque suas famílias foram encontradas e eles seriam reintegrados, foi muito comovente. Eu torcia para que essa readaptação de ambas as partes realmente acontecesse. Outro caso foi numa sessão com a tia de um paciente psiquiátrico de 20 anos que nunca havia sido tratado e todo dia caminhava por horas a esmo, deixando-a preocupada com sua integridade física, já que ele fora agredido algumas vezes na rua e levado desacordado para o hospital da cidade. Foi lá que eu os conheci. Um dia ela apareceu com uma corrente de ferro imensa me perguntando se deveria prendê-lo. Em casos como esse, é preciso ser sensível e hábil, ainda que não concorde, para entender a razão daquela ação da cuidadora do paciente, discutir com ela os prós e contras, oferecer as alternativas que a estrutura de saúde local provê.

Mulier – O trabalho de ajuda humanitária trouxe mudanças para sua vida pessoal e profissional?

Vanessa – Claro. Cada país foi, na verdade, uma escola. Quanto mais eu participo desse trabalho, mais me é dada a oportunidade de estar envolvida num outro código de conduta, outra cultura. Mais eu me interesso e me apaixono por gente. Mais aberta ao novo eu sou e menos preconceituosa. Também fico mais tolerante, flexível, desprendida, feliz. Seu senso de justiça cresce na mesma medida. Até a água limpa que você pode beber tem mais valor. Profissionalmente, minha atuação é mais ampla agora porque hoje faço não só um trabalho clínico, mas também psicossocial.

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7 Comentários

  1. SAntonio Joaquim Francisco dos Santos Braga maio 3, 2013 at 14:52 - Reply

    Vanessa acho voce incrivel. Parabens pelo que voce fez, faz e se propõe a continuar fazendo. Se houvesse mais pessoas como voce, as necessidades daqueles que sofrem oprimidos, seriam menores. Sinto orgulho por voce ser brasileira como eu e ser psicóloga como minha filha.

    • Vanessa Cardoso maio 4, 2013 at 12:10 - Reply

      Braga, eh vc? Obrigada por ter escrito, foi muito gentil. E parabéns por sua Julita! Ela tb eh incrível!!!! Generosa, sensível e de muito, muito bom coração!!!! Grande abraço

  2. Norma Lyra Lobato maio 7, 2013 at 13:16 - Reply

    Vanessa,

    Sou amiga de sua mâe e de seu pai.Como eles devem estar orgulhosos de você.
    Parabéns pelo seu trabalho e que Deus continue a te iluminar.

  3. katia grey maio 9, 2013 at 17:49 - Reply

    TENHO UM ORGULHO MUITO GRANDE DE SER SUA AMIGA.
    PARABÉNS MORENA.

  4. Helio cardozo janeiro 31, 2014 at 12:12 - Reply

    Tenho orgulho de ser seu tio meus parabes continuo dizendo q. Vc. Ainda tem muita coisa pela frente q.vc. Vai conseguir, beijos do seu tio
    helio e familia

  5. Maressa janeiro 30, 2016 at 16:13 - Reply

    Olá, Vanessa.
    Tudo bem?
    Também sou psicóloga e tenho muito interesse em participar de uma missão humanitária.
    Você poderia me passar algumas informações?

    Eu te admiro muito.

    Um abraço,
    Maressa

    • Vanessa abril 26, 2016 at 8:37 - Reply

      Olá, Maressa!
      Tudo bem?
      Desculpe o atraso com que te respondo.
      Muito obrigada pela msg, antes de mais nada.
      Vc pode entrar no link abaixo e ver todas as informações sobre nosso processo seletivo. E qualquer dúvida, entre em contato com o email também no site.

      http://www.msf.org.br/trabalhe-conosco-exterior

      Grande abraço,

      Vanessa

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