Mulher cigana tem o papel de guardiã do patrimônio cultural e de transmissora de valores sociais do grupo

2 de março de 2013 1 Comentário »
Mulher cigana tem o papel de guardiã do patrimônio cultural e de transmissora de valores sociais do grupo

Foto:  Noiva cigana – Foto de Fernando de Tacca – Reprodução 

Jornal Mulier – Julho de 2008, Nº 54

Estimativas recentes afirmam que varia entre 600 mil a 1 milhão a população cigana dispersa pelo território brasileiro. Relegados à própria sorte, os ciganos ainda são vítimas de preconceito devido a seu estilo de vida considerado pouco convencional, que, na realidade, faz parte de um processo de exclusão social iniciado há milhares de anos.

A característica nômade, de não fixação a um território, teria origem há cerca de 4 mil anos, com a expulsão de um grupo populacional originário de região onde hoje estão a Índia e o Paquistão. A peregrinação por diversos continentes era seguida de constantes perseguições e expulsões, fazendo com que não se fixassem em nenhum território. Os estereótipos referentes aos ciganos como preguiçosos e trapaceiros foram ganhando força por onde passavam. As sociedades não viam com bons olhos aquele povo que andava em grupo, falava um dialeto próprio, não exercia atividade econômica regular, não tinha uma religião própria e, com suas atividades de adivinhação, aproveitava-se da credulidade do povo. Assim, discriminados pela sociedade, os ciganos formavam um grupo cada vez mais fechado e não encontravam oportunidades para ter uma vida melhor, integrando-se à comunidade. Havia o medo do diferente, da fixação em territórios de outros, a concorrência com pequenos artesãos, comerciantes e artistas, já que eram bons músicos, dançarinos e acrobatas. Adaptavam-se ao meio e às exigências de mão-de-obra do mercado para sobreviver. 

Exclusão social

A situação de exclusão realmente levava a pequenos furtos e espertezas, como acontecia com não-ciganos. Os próprios ciganos afirmavam que não deixariam seus filhos e animais morrerem de fome, não sendo crime apropriar-se do que é produzido pela natureza, como água, capim, lenha, ovos e galinhas, mesmo estes estando protegidos por uma cerca. Aliás, a noção deles sobre propriedade particular é bem diferente dos não-ciganos. As regras diziam que o furto só poderia servir para o sustento naquele momento, não para o enriquecimento próprio, e devendo ser usada força física, apenas a esperteza. Uma característica peculiar aos ciganos é que, pela vida itinerante, nunca foram acumuladores de bens materiais, pois poderia atrapalhar as viagens. As riquezas que pudessem ter estavam em forma de ouro, prata ou joias, fáceis de transportar, não sendo comum entre eles o valor ao trabalho para acumulação de bens. Por isso, dão a impressão de viver de um dia para o outro, não planejando o futuro. Valorizam mais atividades de convívio social e ajuda mútua.

Mulheres ciganas

A situação das mulheres era um pouco mais delicada devido a suas habilidades e poderes mágicos de ler a mão e prever o futuro. Na Europa Ocidental da Inquisição, em parte da Idade Média e na Europa Moderna, foram alvos fáceis de perseguições, tidas como bruxas, capazes de rogar pragas, conhecedoras de poderes diabólicos e poções venenosas, afrodisíacas e abortivas. Na verdade, o que as ciganas fazem não é trapacear prevendo apenas coisas boas, elas praticam a arte da quiromancia, também conhecida como buena dicha ou buenaventura. Palavras agradáveis que satisfazem os desejos do cliente são “adivinhadas” pelas ciganas até pelos próprios gestos e atitudes dos clientes, não necessariamente lidas nas linhas de suas mãos. A prática da quiromancia é inocente, as ciganas distribuem ilusões, preveem nascimentos e prometem fortuna. É um meio de ganharem a vida.

Em virtude das perseguições em Portugal e Espanha devido ao fracasso na integração e assimilação forçadas, os ciganos chegaram à América durante a colonização. No Brasil, as primeiras levas de ciganos teriam aportado em 1574, degredados por não se adequarem à vida europeia e servindo ao interesse de povoar os territórios de além-mar.

A situação de exclusão não acabou no Brasil. Na condição de marginalizados, eram frequentemente alvo de ocorrências policiais e notícias nos jornais, alimentando uma imagem negativa. Um dos estereótipos mais comuns foi o de ladrões de crianças. Os ciganos adoram suas crianças e costumam ter muitos filhos. Registros históricos revelam que muitas vezes filhos ilegítimos eram entregues aos ciganos por moças de “boa família” adúlteras ou solteiras, que engravidavam e perderiam a reputação caso assumissem a maternidade. Crianças eram largadas nos acampamentos ciganos, assim como nas rodas dos expostos, comuns em hospitais e conventos, ou entregues pela própria mãe. Assim nasceu o mito de que cigano rouba e pratica violência com criança, usado para amedrontar meninos e meninas quando não querem fazer as vontades dos pais. Mesmo assim, os ciganos foram se fixando em território brasileiro, exercendo atividades que iam do mercado de escravos africanos a cargos no judiciário. Mitos e preconceitos alimentaram a vida dos ciganos, que têm uma organização social própria e uma Lei Cigana.

Em entrevista ao Jornal Mulier, o cigano Derly Gomes de Oliveira, Cigano Manuchi, presidente do Grupo Cultural de Dança União Cigana, revelou as particularidades de seu povo. Segundo Derly, apesar do preconceito, as mães ciganas ensinam aos filhos desde pequenos que eles são superiores aos não-ciganos, que devem ter amor próprio e autoestima, “cigano nunca ajoelha, nem abaixa a cabeça”. Meninas e meninos ciganos ainda costumam ser prometidos pelos pais para o casamento, e o dote ainda é comum. Derly afirma que, hoje, estima-se em R$ 30 mil o valor de um dote, em bens ou dinheiro, a ser usado pelos pais para ajudar no início da vida do casal. Apesar do compromisso entre as famílias, ciganos podem casar com outros ciganos que não os prometidos ou com um não-cigano.

De acordo o cigano Manuchi, os casamentos ciganos costumam ser duradouros e felizes. A mulher ainda precisa casar virgem, sendo necessário certificar-se de sua castidade através de um exame realizado pela matriarca do grupo, assim como pode ser exigida a comprovação de sangramento após as núpcias, visto por toda a comunidade durante a festa de casamento. O adultério é permitido ao homem se for com uma não-cigana, se for com outra cigana, ele pode ser banido do grupo. A mulher cigana costuma não ver como traição um relacionamento de seu marido com uma não-cigana. Já para a mulher, não é permitida a traição em qualquer hipótese, sendo ela julgada pela própria família e banida do grupo. O banimento, para um cigano, é como uma pena de morte ou prisão perpétua.

A maternidade é quase obrigatória entre as ciganas. A mulher que não gerar filhos pode ser expulsa, pois crianças representam prosperidade e esperança. A mulher cigana que tem muitos filhos é considerada dotada de sorte pelo seu povo. A pior praga para uma cigana é desejar que ela não tenha filhos, e a maior ofensa é chamá-la de Dy Chucô (ventre seco). Talvez seja este o motivo das mulheres ciganas terem desenvolvido a arte de simpatias e garrafadas milagrosas para fertilidade.

Na tradição cigana, a mulher tem o papel de guardiã do patrimônio cultural e de transmissora dos valores sociais do grupo. Cabe à mulher os cuidados com os filhos e a casa, além das atividades como leitura de cartas e mãos, que não deve ser cobrada, ficando à escolha da pessoa o pagamento pelo serviço. As mulheres devem preparar a comida descalças, pois o contato com a terra tira os aspectos negativos e absorve coisas positivas. Durante a menstruação, não podem cozinhar nem dormir junto com o marido, a menstruação representa impureza. Segundo a geógrafa Solange Guimarães, da Unesp de Rio Claro, as prostitutas não têm lugar na comunidade cigana, sendo banidas do grupo, e os decotes das roupas, quando existem, “ocorrem porque a sensualidade para os ciganos não está nos seios, mas nas pernas, vistas como a parte mais próxima da vida, pois conecta a genitália com a terra, fonte sagrada da vida de um cigano”.

Os ciganos têm uma relação muito forte com a natureza, precisam da força da mesma para recarregar as energias. O sol e a lua transmitem energia e força, o fogo dá vidência e afasta a negatividade, a terra dá energia, e a chuva renova e purifica o corpo e a mente. Para os ciganos, essa captação de energia pode ser realizada através dos movimentos da dança, para eles uma manifestação sublime de Deus, através do corpo e da alma. Dançam para celebrar a alegria e também nos momentos de tristeza, pois a dança serve para celebrar seus sentimentos e emoções. Enquanto a dança traz o alívio para o corpo, o colorido das roupas traz energia positiva. Segundo Derly, a morte para os ciganos é uma passagem para outra vida, acreditam na ressurreição e consideram Jesus Cristo o rei dos ciganos porque era nômade, foi perseguido e discriminado.

Políticas de inclusão social

De acordo com Derly, hoje o cigano quer estudar e trabalhar, mas isto precisa ser feito em parceria com outras instituições para que a evolução não seja sinônimo de perda da tradição. Com relação a esta integração social, já há uma clara preocupação do poder público em garantir direitos ao povo cigano. O governo federal instituiu o dia 24 de maio como o Dia Nacional do Cigano e lançou a Cartilha “Povo Cigano – O Direito em suas mãos”, elaborada pela advogada Mirian Stanescon, cigana do clã Kalderash, e ensina o povo cigano a exercer, usufruir e garantir seus direitos. Também há a iniciativa de criação do Centro de Referência em Direitos Humanos da Cidadania Cigana. No Brasil, existem dois grupos principais de ciganos, os calons, que seguem nômades, e os rom, que tendem a fixar residência e progredir socialmente. Nos acampamentos, normalmente a vida é difícil, com precárias condições de saneamento básico e moradia. Também não costumam ter registro civil, ficando sem acesso à educação e à saúde. A preocupação do governo e da própria comunidade cigana ativista é integrar essa população enquanto cidadãos brasileiros, reconhecendo sua influência cultural e mantendo vivas suas tradições sem discriminação e com melhor qualidade de vida.

Fontes

MOONEN, Frans. “Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil”. Juiz de Fora: Centro de Cultura Cigana, 2008 (edição digital).

Revista “Carta Capital”, 13/07/2005.

“Revista de História da Biblioteca Nacional”, n° 14, novembro de 2006.

Revista “Super Interessante”, n° 72, setembro de 1993.

www.cm8mar.org.br

www.culturacigana.com.br

www.dhnet.org.br

www.unesp.br/aci/jornal/163/geografia:html

É permitida a reprodução de conteúdo do site para fins não comerciais, desde que citada a fonte: Jornal Mulier – www.jornalmulier.com.br.

1 Comentário

  1. RoSa MARIA julho 9, 2016 at 21:15 - Reply

    Adorei a matéria. Sou apaixonada pelo povo cigano e suas lendas.

Deixe um comentário