HQs – Margarida questionou papéis culturalmente reservados às mulheres

2 de março de 2013 Comente »
HQs – Margarida questionou papéis culturalmente reservados às mulheres

Jornal Mulier – Julho de 2012, Nº 102

As histórias em quadrinhos (HQs) geralmente são vistas como puro entretenimento, mas nelas também são propagados valores e padrões de comportamento, sejam para crianças, homens e mulheres. Margarida é uma personagem interessante das HQs para analisar como os desenhos retrataram a mulher a partir das mudanças da contemporaneidade, da sociedade pós-industrial ou também chamada pós-moderna, caracterizada pela globalização da economia, revolução das comunicações e mudanças profundas nas relações até então entendidas como estáveis na vida das pessoas. O feminismo é uma das características da sociedade contemporânea e proporcionou importantes conquistas sociais femininas nas últimas décadas, como o direito ao voto, a entrada no mercado de trabalho e a revolução sexual.

A personagem Margarida foi objeto de pesquisa de Agda Dias Baeta no curso de pós-graduação em Gestão Estratégica em Comunicação Organizacional e Relações Públicas na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Leitora dos gibis da personagem desde os 10 anos, Agda quis entender como as HQs refletem as novidades das mudanças sociais da modernidade tardia e qual a influência das histórias para as meninas leitoras a partir de então.

O período analisado foi de 1986 a 1997, época em que Margarida teve uma revista própria, quando deixou de ser apenas a namorada do Pato Donald, passou a vestir-se com roupas modernas – e não mais o colete preto e rosa, as mangas bufantes, laçinho na cabeça – era uma mulher que trabalhava fora, lutando por seus direitos e ideais, a personificação da mulher dessa nova época. Nas histórias, assim como na vida real, os estereótipos da mulher foram questionados pela personagem Margarida.

O aparecimento de Margarida nas tiras dos gibis aconteceu a partir da década de 1950. Ela foi uma personagem feminina diferente, pela personalidade forte, apesar de nas primeiras histórias estar envolvida em acontecimentos relacionados a romances, ciúmes e trapalhadas de uma mulher consumista e fútil, cuja principal atividade era ser presidente do Clube Feminino de Patópolis (cidade fictícia do enredo). Lá ela organizava cursos de culinária, eventos beneficentes e sessões de costura e bordados, relata Agda em sua pesquisa.

A versão feminista da pata surgiu na década de 1960, coincidente com a introdução da pílula anticoncepcional. Margarida começou a ser retratada como uma mulher trabalhadora, a competente secretária do Tio Patinhas, em contraste com a preguiça e incompetência dos primos Donald e Peninha, com quem trabalhava em um jornal. A partir daí, ninguém mais segurava Margarida. Além de secretária, ocupou atividades profissionais como repórter televisiva, taxista, policial, arqueóloga, maquinista de trem, entre outras. Era a personificação da mulher real, que não ocupava mais espaços até então restritos a elas, buscava se afirmar como profissional qualificada e competente para conquistar sua independência, mesmo enfrentando inúmeros preconceitos e recebendo salários menores por ser mulher.

Crise de identidade

Entretanto, como na sociedade real, a mudança de Margarida nas HQs não acontece sem questionamentos e traumas, analisado pela autora da pesquisa como uma crise de identidade também vivida pelos indivíduos na contemporaneidade. Já no primeiro gibi “Margarida” lançado, ela percebe a necessidade de mudar seu comportamento em relação a si mesma e ao mundo, apesar disso gerar incertezas sobre o que deve realmente mudar ou permanecer no seu comportamento feminino. Uma das tiras mostra Margarida agradecendo o Pato Donald por levar uma caixa pesada para ela, mas fica em dúvida se como uma “nova” mulher ela não estaria com esta situação em uma relação de inferioridade. No desenrolar da história, Margarida toma a caixa de Donald, pedindo para que ele deixasse de querer ser melhor do que ela. No entanto, nova dúvida: carregar peso seria prova de alguma coisa? Não era preciso perder a feminilidade para mostrar-se feminista. Qual a solução encontrada pela Pata para resolver o dilema? Dividiriam o peso da caixa.

Segundo Agda Baeta, “a marca do feminismo está presente na maioria das histórias, seja como tema principal ou secundário, permitindo nos dizer que ser feminista é uma das próprias identidades da pata. A igualdade de direitos e o preconceito em relação à mulher são situações frequentemente abordadas nas histórias em que Margarida é a protagonista. Além disso, nota-se claramente no discurso da personagem que o feminismo influencia seu novo comportamento no que se refere ao relacionamento amoroso, à divisão das atividades domésticas e ao mercado de trabalho”.

Um exemplo interessante é a história na qual Margarida arruma um emprego de xerifa para provar ao namorado, Pato Donald, a capacidade das mulheres. Ela desabafa em seu diário que, após um dia cheio de trabalho, chega em casa e está tudo uma bagunça, a faxineira faltou e ela ainda havia quebrado as unhas. Reconheceu, por um momento, sentir falta da “velha” Margarida. Mas só por um instante, os preconceitos são ilustrados nas HQs para mostrar como as mulheres devem agir frente aos mesmos, elas devem reagir.

Vida afetiva

E como ficam questões referentes ao amor, casamento e maternidade nas HQs de Margarida? Para Agda, Margarida acredita na ação das mulheres para tomarem a atitude no relacionamento, não deixando ser subjugadas pelo sexo oposto. Na história “Machão, Não!”, Donald, sempre ciumento, mostrando a relação histórica entre domínio e poder na relação de parceiros amorosos, não quer que Margarida tire algumas fotos de biquíni para uma revista. Ele afirma: “namorada minha não tira fotos e tá acabado!”. Ela responde: “se você quer assim …”. Ele, com fisionomia de vitorioso, diz: “concorda em não tirar mais fotos?”. Ela: “concordo com tá acabado!”. A independência financeira e emocional conquistada pela mulher na sociedade levou ao casamento e à maternidade tardios, além disso, os relacionamentos não seriam mais o centro de suas vidas como no passado. Isso é claramente visível nas HQs de Margarida.

Feminismo x feminilidade

Mas as mudanças de atitude feminina, lembram as tiras de Margarida, não precisam negar sua feminilidade. “As mulheres da nova ambiência querem seus direitos garantidos sem que para isso precisem se sentir masculinizadas. Nas histórias, a ideia de emancipação da mulher é acompanhada pela importância de ‘estar sempre produzida’: bem vestida, maquiada e penteada. A beleza é fundamental para a mulher pós-moderna, a mulher da sociedade da imagem”, assegura Agda Baeta. Para Margarida, a estética é importante, apesar de não ser a sua única preocupação de sua vida. Se o feminismo nas HQs de Margarida não está relacionado ao feminismo radical, também o feminino mudou de significado, não sendo mais sinônimo de delicado, subjetivo e sensível, e, sim, também relacionado à competência, determinação, dentre outras inúmeras qualidades dessa nova mulher.

O problema é que cuidar da beleza tendo mil atividades domésticas e profissionais dá trabalho, sendo questionada nas HQs, apesar de sempre enaltecer a capacidade feminina de dar conta de todas as atribuições. Em um dos episódios, Margarida é chamada com urgência para uma reunião e sai correndo do salão com os bobes na cabeça, causando transtorno na cidade com sua aparência descuidada.

As histórias analisadas para a pesquisa mostram como as HQs da Margarida foram importantes por captarem esse momento de transição da sociedade e de mudanças importantes na vida das mulheres, não sem levar a conflitos de identidade do equilíbrio entre a mulher do passado e a mulher contemporânea, disposta a lutar por sua independência e liberdade. Interessante ressaltar, segundo a autora, que os roteiristas e desenhistas eram homens, eles perceberam esses anseios, mostrando que as mudanças foram verificadas por toda a sociedade.

A conclusão da pesquisa é que Margarida refletiu e disseminou mudanças sociais e de alguma maneira influenciou o comportamento das leitoras, muitas adentrando na vida adulta almejando o comportamento da personagem. O gibi da Margarida foi pioneiro ao retratar essa mudança das mulheres, mesmo com toda sua ingenuidade e tratando-se de uma leitura de entretenimento, algo não verificado na mesma dimensão em outros meios de comunicação pretensamente sérios, atuais e adultos.

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