Maternidade é temática recorrente na Arte Ocidental

14 de abril de 2015 1 Comentário »
Maternidade é temática recorrente na Arte Ocidental

Jornal Mulier – Maio de 2014, Nº 124

A figura da mãe, protetora e acolhedora, expressa o medo e do fascínio que a maternidade desperta nos artistas

A mulher sempre foi objeto de interesse e inspiração para a Arte, esta produzida majoritariamente por mãos masculinas, ou seja, “as mulheres não se representavam a si próprias. Eram representadas”, conforme Georges Duby e Michelle Perrot no livro “Imagens da Mulher”. Dessa forma, “temos que nos contentar com aquilo que os homens moldaram, e que é, aliás, de um interesse considerável para a compreensão das relações entre o masculino e o feminino”, afirmam.

Três imagens foram recorrentes sobre o feminino na História da Arte Ocidental: a figura da companheira nos jogos eróticos, a da mãe protetora e consoladora (representando o imenso e terrível poder das mulheres) e a mulher subalterna e submissa.

Embora a maternidade historicamente tenha proporcionado uma relação contraditória na condição da mulher, por ressaltar o seu poder e também restringir sua presença no espaço público em função das responsabilidades no espaço do doméstico com atividades dos cuidados, a reportagem vai ater-se a esta representação feminina na Arte, por ser a mais exaltadora do feminino.

A mãe onipresente e onipotente

A mulher, segundo Duby e Perrot, no mais profundo da consciência humana, é também, e acima de tudo, a mãe: “A mãe desejada, a mãe recusada, fonte de vida, último recurso, refúgio. A força deste modelo imaginário explica a presença tão frequente na memória das famílias, na raiz mítica de uma ascendência, de uma antepassada fundadora, cuja pessoa se confunde com a terra em que a dinastia se enraíza. Explica também por que razão as sociedades patriarcais concedem facilmente às matronas um poder determinado, em particular um poder sobre os filhos, quando, instaladas a seu lado como conselheiras aceites, os ajudam a gerir judiciosamente o seu patrimônio”.

As citadas mulheres, onipresentes e onipotentes, estão à sombra e na origem de tantas imagens femininas produzidas, majestosas, imponentes, inabaláveis. Tais imagens, acima de tudo, tinham a função de abrasar o coração dos homens, levando-os a agir e ultrapassar a si mesmos.

A recorrente identificação de imagens femininas fortes e a pátria é um exemplo interessante. “A França é mulher, em todos os monumentos aos mortos da Grande Guerra”, lembram os historiadores, assim como o são a República e as virtudes terrestres: a caridade, a força, a temperança, a justiça e todas as nobres ideias pelas quais nos sacrificamos.

Da Antiguidade ao Mundo Medieval

Desde a pré-história, caçadores já desenhavam e esculpiam, antes de se ter conhecimento de qualquer outra forma de manifestação artística, estatuetas disformes e redondas nas nádegas, no ventre e nos seios, as chamadas “Vênus”, símbolos daquela que gera a vida: a mulher. A mulher pagã é poder, são as deusas-mães, ressaltam Duby e Perrot.

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“Vênus de Willendorf” (Aproximadamente 22000 à 24000 a.C)

No Império Romano, cujo papel das mulheres era o de mãe e esposa fiel, inúmeras obras retratam o duplo ideal, romano e cristão, de famílias constituídas por um número razoável de filhos e da mulher fiel a um único homem.

Da Idade Média ao Renascimento

Nesse período, populariza-se um conjunto de sentimentos a respeito do papel da mulher no seio da família, principalmente as “Virgens com o Menino”, representando as inúmeras expressões do amor materno, suscetíveis de todos os graus de ternura, atenção e preocupação que sob certa melancolia são presságios da crucificação e morte futuras.

Para Duby e Perrot, “a repetição obsessiva do tema mãe-filho alimentou durante séculos a ideia de uma ‘vocação maternal’ da mulher. Da série infinita das imagens que ilustram este tema, destacam-se, por vezes, o dever de procriação, tal como a Bíblia o impôs a Eva, com a força opressiva e terrível de uma ‘lenda das origens’: ‘multiplicarei os sofrimentos da tua gravidez; darás à luz na dor’”.

No entanto, apesar desses ideais nem sempre ajudarem na construção de uma sociedade mais igualitária nas relações entre mulheres e homens, a exaltação de Maria é um contraponto a uma tentativa do cristianismo em combater as estátuas pagãs femininas presentes em diversas partes de templos religiosos europeus. Sob pressão de devoções populares a diversas santas, o cristianismo precisou aceitar esta realidade, e isso porque foi uma mulher que gerou Jesus, o Deus feito homem.

“A piedade cristã voltou-se assim, naturalmente, para a mãe de Deus, chegando até a situá-la num plano apenas levemente inferior ao de Cristo, seu filho, como se pode ver na cena da Coroação, que surge nos pórticos das catedrais francesas no final do século XII. De geração em geração, para o conjunto da cristandade, e posteriormente para uma parte desta, após a Reforma, a imagem de Maria foi a imagem sublimada da feminilidade sem mácula, tanto fascinante quanto, por um efeito metafórico, assimilando a Virgem à Igreja, esposa de Cristo, associava os valores da maternidade e da virgindade aos de uma conjugalidade soberana, de senhora encarregada de interceder, submissa, mas obstinada, que levava finalmente de vencida a força viril, atenuando-lhe assim o rigor. A figura de Nossa Senhora reina assim sobre toda a iconografia europeia. Acima de tudo maternal, Virgem com o Menino, fazendo do seu próprio corpo o trono de Deus, Virgem com o Manto, cobrindo e abrigando com ele a humanidade, sua atormentada progenitura, Virgem das Dores, Mater Dolorosa, prostrada sobre o corpo suplicado”, descreve o livro.

Como analisa o autor Wendy Beckett, no livro “História da Pintura”, “as madonas são uma constante na pintura renascentista”, quase todo artista tentou representá-la. O tema da Virgem e do Menino invoca não apenas os aspectos específicos do cristianismo (em que a humanidade de Jesus é o mistério central), mas também os valores humanos nos quais se baseiam todas as religiões.

“Todos tivemos mães, e toda psique é afetada por esse fato. Explorar essa parte básica da existência humana exercia irresistível fascínio sobre os artistas, e ninguém foi mais sensível do que Bellini (Giovanni Bellini – 1430-1516) a esse tema fundamental. Todas as suas madonas têm uma força estética e espiritual que torna memorável cada uma delas. Ele entende, num nível primário, essencial, o sentido da maternidade e da infância, e é essa a base da convicção que vemos por trás de suas Madonas”.

Ao lado de Bellini, Rafael Sanzio (1483-1520), herdeiro artístico de Leonardo Da Vinci (1452-1519) e Michelangelo Buonarroti (1475-1564), também se notabilizou como um dos maiores madonnieres, ou seja, pintor de madonas da Arte Ocidental. Na obra “A Madona Alba”, de Rafael, o porte de Maria e a tristeza serena de seu olhar expressam dignidade, solidez e força espiritual. Até mesmo a sandália usada, em estilo militar, enfatiza seu lado guerreiro. Assim como o filho, ela assume uma postura heróica.

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“Madona Alba” (1510), de Rafael

Outra imagem recorrente de Maria e Jesus é a Pietà: Maria com o Cristo morto nos braços. A “Pietà” de Michelangelo é considerada a mais bela representação dessa imagem. Esculpida em um bloco único de mármore de Carrara, sem adição de ouro ou efeitos de cores, o artista sabia que nas delicadas nuances do melhor mármore do mundo poderia ser recriado tanto o calor de uma anatomia viva (Maria) quanto a frieza de um corpo inerte (Jesus).

Segundo os autores do livro “A arte secreta de Michelangelo: uma lição de anatomia na Capela Sistina”, Gilson Barreto e Marcelo G. de Oliveira, “a ideia de graça de Michelangelo – o belo espiritual – se reflete, principalmente, na expressão da Virgem, ‘a grave e pensativa; sua juventude traz uma sombria timidez de criança chamada a contemplar um mistério maior do que ela”’, nas palavras do autor Antonio Paoluccio.

Ao contrário da costumeira expressão de dor da cena de acolhida de Cristo morto descido da cruz, a referida “Pietà” é diferente. “A atmosfera comovente é completada pela postura da madona: ao mesmo tempo em que o braço direito envolve com força o corpo de Cristo, a mão esquerda o apresenta, convidando o espectador à mesma estupefação”, destacam Barreto e Oliveira. A “Pietà” de Michelangelo ilustra a capa desta reportagem.

Séculos XVI a XVIII

Imagens de Maria e o menino Jesus continuam populares durante a maior parte do Renascimento. Na Itália, é emblemática a obra de Sandro Botticelli, “A Virgem com o Menino”, na tentativa de traduzir o impossível desafio dos humanistas, segundo Duby e Perrot: conciliar o mundo cristão e o mundo natural, o inteligível e o sensível.

Diversas obras também antecipam características da vida burguesa, utilizando-se da mesma forma da figura maternal de Maria. A tela “A Sagrada Família da cortina”, de Rembrandt, é uma observação minuciosa do cotidiano familiar e doméstico, com quietude, intimidade, ternura maternal. Sem auréola, Maria vive dias felizes embalando o filho na penumbra.

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“A Sagrada Família da cortina” (1646)

Mas a sociedade fica cada vez mais complexa, e os artistas preocupam-se em mostrar o cotidiano de figuras míticas assim como do povo. Em casas arrumadas e limpas, embora simples, as mulheres são retratadas em suas funções de cuidadoras em quadros de Pieter de Hooch (1629-1684) e Gerard Ter Borch (1617-1681), catando piolhos nas crianças. Das classes subalternas à nobreza, a exemplo dos retratos de Maria Antonieta: o papel de mãe é intransferível, mesmo entre as rainhas, é no colo das mulheres que as crianças estão amparadas.

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Acima, “A família do amolador” (1653), de Borch, e “Maria Antonieta com os filhos” (1781), de Elisabeth Vigée-Lebrun

Séculos XIX e XX

Para Duby e Perrot, no século XIX estabeleceu-se um consenso em torno do ideal feminino: era a mulher burguesa do lar. Por outro lado, “as artes visuais põem-nos em confronto com mulheres, com vivências femininas outrora invisíveis na sociedade”, e as próprias mulheres começam a representar-se a si mesmas: “os modelos sexuais que regiam as artes e atribuíam a criação artística aos homens e a procriação às mulheres transformam-se”.

Sob a influência das ciências, as representações das madonas perdem espaço para pinturas realistas, embora a temática da maternidade continue uma constante. A tela de Joaquim Sorolla (1863-1923), de 1895, é um belo exemplo. Mostra o instante de descanso e ternura entre a mãe e o bebê após o parto. “O tema da mãe com o seu filho nada perdeu o seu encanto, mas as suas versões modernas mais importantes são laicas e individualizadas, sublinham o seu aspecto psicológico e físico”, analisam Duby e Perrot.

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“A mãe” (1895), de Sorolla 

E o que dizer da artista feminina mais conhecida da América Latina, Frida Kahlo? Talvez nenhuma artista tenha retratado tão ardorosamente as paixões e as dores femininas, no caso, da própria artista, vítima de um grave acidente de ônibus quando jovem, deixando sequelas para o resto de sua vida. Tachada de surrealista, Frida discordava: dizia não pintar seus sonhos, e sim sua realidade.

Embora ícone das feministas, por sua liberdade sexual e engajamento político, a maternidade é tema de importantes obras suas. Em 1932, pintou o quadro “Meu nascimento”, no qual retratou a crueza do ato de nascer, e “Henry Ford Hospital”, talvez o autorretrato mais doloroso feito pela artista, quando a mesma sofrera um segundo aborto e percebia que nunca poderia levar uma gravidez adiante em função de seus problemas de saúde.

Na pintura, Frida é o ponto central da obra e sofre com uma única lágrima tanto quanto Jesus Cristo ou um santo martirizado, embora o sangue só pode ter vindo de órgãos reprodutivos da mulher. As seis imagens ao redor do abdômen inferior da artista são ligadas a linhas vermelhas, simbolizando o cordão umbilical e tendo relação com o aborto: o feto é Dieguito (“Pequeno Diego” – o artista Diego Rivera é marido de Frida), que não existe; o caracol (no canto superior direito) representa o horror lento de perder um bebê; a máquina (no canto inferior esquerdo) simboliza a impessoalidade médica; a orquídea (centro inferior) é real, um presente de Diego. As duas imagens restantes dão uma visão da pelve e da anatomia feminina para seu corpo quebrado.

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“Henry Ford Hospital” (1932), de Frida Kahlo

George Duby e Michelle Perrot acreditam que as mulheres realizaram progressos substanciais nas últimas décadas na pintura, fotografia, cinema, publicidade e caricatura. Mas os referidos progressos foram marginais, em função da inércia das estruturas e a força da resistência às mesmas. Dessa forma, pouco modificaram sua própria representação e o universo visual em geral, que continua a ser uma obra masculina.

Este é um desafio que apresenta-se às novas gerações de mulheres: fazer uma arte verdadeiramente representativa da vida e dos desejos das mulheres.

Fonte

BECKETT, Wendy. “História da Pintura”. São Paulo: Ática, 1997.

DUBY, Georges; PERROT, Michelle. “Imagens da Mulher”. Porto: Edições Afrontamento, 1992.

BARRETO, Gilson; OLIVEIRA, Marcelo G.. “A arte secreta de Michelangelo: uma lição de anatomia”. São Paulo: Arx, 2004.

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1 Comentário

  1. Saddam maio 8, 2015 at 23:23 - Reply

    Tica Moreno disse:Muito legal seu texto.A Michele Perrot tem outros liovros liovros bem legais também: os excluídos da história, minha história das mulheres e As mulheres ou os silêncios da história. São muito legais pra fazer essa reflexão.Esse ano tem o centenário da Maria Bonita, e uma das coisas que querem fazer é não lembrar da Maria Bonita como companheira do Lampião. Porque essa á a forma mais usual de enxergar as mulheres na história: a mulher do fulano. Super importante esse debate, parabéns!

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