Jurema Werneck – médica e coordenadora da Organização não governamental Criola

3 de março de 2013 Comente »
Jurema Werneck – médica e coordenadora da Organização não governamental Criola

Foto: Adriana Medeiros – Arquivo Criola 

Jornal Mulier – Fevereiro de 2011, Nº 85

Os resultados do racismo patriarcal sobre a saúde das mulheres negras são devastadores

Mulier – Conte-nos um pouco sobre sua trajetória, vida e formação.

Jurema – Nasci no Rio de Janeiro, numa favela carioca chamada Morro dos Cabritos, em Copacabana, onde meus pais também nasceram. Sou fruto de uma grande família, formada em torno de minha bisavó (que viveu até os 101 anos), uma família com muitas crianças e adultos, unidos pelos vínculos de sangue, de afeto, de festas e de religião. Estudei em escolas públicas e ainda sou a pessoa de minha família com mais anos na escola, estudei até o doutorado.

Mulier – Você é coordenadora da Organização não governamental Criola. Quando a ONG foi criada e qual seu objetivo?

Jurema – Criola foi criada em 1992 por mulheres negras, como ferramenta de fortalecimento de mulheres negras (meninas, jovens e adultas) para o enfrentamento do racismo, do sexismo e da lesbofobia. Entendemos que a luta política protagonizada pelas mulheres negras em nome de seus próprios interesses individuais e coletivos é fundamental para a mudança social.

Mulier - Apesar do Brasil ser um país multiétnico, o racismo é notório e incide sobre a vida de mulheres e homens. Como você vê a prevalência do racismo no país e como ele afeta as mulheres?

Jurema – O racismo que vivenciamos é essencialmente patriarcal, ou seja, confere a posição de maior privilégio para os homens brancos, sem esquecer que as mulheres brancas também partilham o polo privilegiado. O impacto deste racismo patriarcal sobre homens e mulheres, negras e negros, é devastador – para homens negros, exige sua eliminação física; para as mulheres negras, a hiperexploração que, se não abre mão da eliminação física, ela está colocada no final de uma trajetória de responsabilidade por toda movimentação econômica. Podemos dizer que o principal grupo que a superexploração capitalista corrói somos nós. Quem, como eu, atua no campo da saúde, verifica os resultados disto: morte precoce, altos níveis de negligência, de não atendimento, de doenças evitáveis, etc.

Mulier - Recente estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostrou como negras e negros sofrem maior discriminação e racismo por parte dos serviços de saúde. Como médica e profunda conhecedora da saúde da mulher negra, como vê estes resultados?

Jurema – Estudei Medicina e apesar de ter deixado a profissão há muitos anos continuo atuando na saúde como ativista integrante do movimento de mulheres negras. Os resultados do racismo patriarcal sobre a saúde das mulheres negras são, com já disse, devastadores. Perdemos anos de vida, por razões evitáveis: mortes no parto, violência, doenças infecciosas, agravos mal diagnosticados e mal tratados, negligência… Isto, considerando que somos atendidas pelos mesmos profissionais que atendem as brancas – mas, como vemos pelas estatísticas de mortalidade disponibilizadas pelo Ministério da Saúde….

Mulier - O que pode ser feito para colocar fim a este tipo de discriminação e outras em várias áreas?

Jurema – A sociedade brasileira – apesar da retomada conservadora que vivemos – já sabe que é racista. Portanto, é mais do que hora de fazermos como as pessoas que frequentam os alcoólicos anônimos fazem, com sua metodologia dos 12 passos: a cada dia, devemos dar o passo necessário para a eliminação do racismo. Cada pessoa, cada política pública, cada investimento financeiro, cada decisão. Profundo compromisso e completa vigilância são exigidos, pois estamos falando de crueldades, sofrimentos, mortes injustas. Nossa tarefa, nos movimentos sociais, é denunciar as falhas neste compromisso e vigilância, propor caminhos e monitorar o que passa.

Mulier - Como a ONG Criola tem trabalhado pelo empoderamento das mulheres negras no país?

Jurema – Oferecendo cursos e bolsas de estudo de diferentes níveis (do ensino de línguas, profissionalizantes até a pós-graduação), fazendo e disponibilizando pesquisas, novos dados, formulando diagnósticos e propostas de nosso ponto de vista; sendo ativistas junto com outras mulheres negras ativistas, numa atuação nos diferentes níveis em defesa dos interesses das mulheres negras.

Mulier - Como analisa a participação das mulheres, especificamente mulheres negras no Brasil, nos espaços de poder e decisão, na política, nas empresas?

Jurema – Não estamos participando dos espaços institucionalizados de poder. As raras mulheres que vemos nestes lugares são as exceções que nos ajuda a ver o quanto falta.

Mulier – O Estatuto da Igualdade Racial foi aprovado em 2010, apesar de muitas críticas por ter retirado pontos importantes, como as cotas para negras na política. Qual sua opinião sobre o Estatuto aprovado, levando-se em consideração principalmente a questão da mulher?

Jurema – Não há nada no estatuto que se dirija especificamente à mulher, nenhum mecanismo foi apontado. Mas, trata-se de uma lei, a 12.228, que dialoga com a Constituição Federal e com várias outras leis que dizem quais são os direitos da cidadania e temos, por obrigação, cumpri-la. Creio que esta lei deve ser usada para reforçar as demais leis e ações, mas é fundamental, antes delas, o compromisso ético e político com a melhoria das condições de vida das mulheres negras e pelo fim do racismo patriarcal.

Mulier – Você é a favor de cotas para mulheres e cotas raciais na política, nas universidades e nas empresas?

Jurema – Sou a favor deste e de outros mecanismos que produzam a diminuição – e até a eliminação – dos privilégios raciais e patriarcais que homens e mulheres brancas têm na participação em diferentes níveis da sociedade. Da mesma forma, exigimos ações de confronto ao racismo patriarcal, com mudanças mais profundas na sociedade.

É permitida a reprodução de conteúdo do site para fins não comerciais, desde que citada a fonte: Jornal Mulier – www.jornalmulier.com.br.

Deixe um comentário