Irmã Maria Heloisa Baptista Gouvêa – religiosa e colaboradora de movimentos sociais

3 de março de 2013 Comente »
Irmã Maria Heloisa Baptista Gouvêa – religiosa e colaboradora de movimentos sociais

Jornal Mulier – Março de 2011, Nº 86

Irmã Heloisa crê que a cada dia mais a mulher vá encontrar seu verdadeiro lugar na sociedade

Mulier – Irmã Heloisa, conte-nos um pouco sobre sua vida, formação e trabalho.

Irmã Heloisa – Há 82 anos, nasci numa família grande, feliz. Graças a Deus, meus pais se amavam muito, e foi num clima de amor, compreensão e respeito que nós, os nove filhos, vivemos. Os pais confiavam nos filhos (com 18 anos eu tinha as chaves de casa, coisa rara na época). Estava com dez anos quando minha família mudou-se para Juiz de Fora. Na adolescência, vivíamos “apertados” financeiramente, mas meus pais faziam questão de que a “educação fosse salva”. Assim, nós, as três mulheres, estudamos no Colégio Santa Catarina, e, os homens, na Academia de Comércio. Por causa do “aperto” financeiro e do “batalhão de gente”, havia muito trabalho em casa. Meu pai ajudava e fazia com que meus irmãos ajudassem no serviço doméstico. Dizia: “não é justo que esse trabalho ficasse só para as mulheres”. Aliás, o “não machismo” já era de família. Meu avô paterno consentiu e até estimulou as filhas a cursarem faculdades. Portanto, na família, nunca senti o famoso machismo. Quando terminei o Curso de Formação de Professores, trabalhei no Grupo Escola Francisco Bernardino, no bairro Manoel Honório, até entrar na Congregação das Missionárias de Jesus Crucificado.

Mulier – Quando e por qual motivo optou pela vida religiosa?

Irmã Heloisa - De formação profundamente cristã, desde bem pequena, sonhava, desejava ser missionária. Ir para a África, China, para anunciar o Reino de Deus àqueles que nunca ouviram falar em Jesus Cristo e ajudar os pobres a terem uma vida digna. Mas, sendo a mais velha dos irmãos, sentia que era hora de ajudar financeiramente na educação deles. Embora fosse participante ativa na Igreja, não era “carola”. Levava uma vida normal: passeava, viajava, tinha amigas e amigos, ia a bailes, até que senti que era hora de realizar meu sonho. Com 29 anos, optei por entrar na Congregação que mais “afinava” com meu ideal. Mais madura, percebi que não precisava sair do país para trabalhar junto à população carente de tudo: saúde, moradia, educação, etc. e, sinceramente, não me arrependo. Com minhas irmãs pude realizar muito do que sonhava.

Mulier – Qual análise que faz do atual papado?

Irmã Heloisa – Difícil fazer uma análise objetiva. Mas digo que gostaria muito que Bento XVI fosse um pouco parecido com o “idoso-jovem” Papa João XXIII.

Mulier – Como vê a relação deste com temas como planejamento familiar, união estável entre pessoas do mesmo sexo e aborto?

Irmã Heloisa – Penso que ele deveria deixar que a consciência das pessoas decidisse, mas optando pela vida como Jesus deseja: “Vim para que tenhas vida e vida plena” (Jo 10,10).

Mulier – Como considera a abordagem desses temas nas últimas eleições no Brasil?

Irmã Heloisa - Inoportuna e infrutífera. Basta ver o resultado das eleições.

Mulier – A senhora há muitas décadas está envolvida com movimentos sociais. Poderia falar um pouco sobre alguns trabalhos que desenvolveu em várias cidades por onde passou, no Brasil e no exterior?

Irmã Heloisa - De fato, desde o início de minha vida religiosa, envolvi-me com esse tipo de trabalho, pois o carisma de minha Congregação nos motivava a isso. Já em 1959, fui trabalhar na Cruzada São Sebastião, no Rio de Janeiro, criada e dirigida por Dom Hélder Câmara, cujo compromisso com os pobres era real, fundamentado no Evangelho. Ele me fez descobrir o verdadeiro sentido das palavras de Jesus: “Eu tive fome e vocês me deram de comer” (ver Mateus 25, 34 e seguintes) e sempre me preocupar com as desigualdades. Mais tarde, em vários lugares, como Governador Valadares (MG), Nova Iguaçu e Mesquita, na Baixada Fluminense, Pancas (ES), nós, irmãs, participávamos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), onde a gente simples, pobre, roceira, sabia fazer uma ligação fé e vida. Daí a luta pacífica, persistente, por saúde, moradia, trabalho e educação. Aprendi muito com esse povo. No Chile, vivia em uma población (favela). Lá também as CEBs atuavam.

Mulier – E o trabalho com as mulheres. Quando e o que a levou a trabalhar com mulheres? Conte-nos alguns projetos desenvolvidos.

Irmã Heloisa - Sempre, na Igreja, as mulheres foram maioria. Portanto, nossa meta era ajudá-las a se descobrir como gente e agente da História. Buscávamos isto através de alfabetização, de capacitação para o trabalho, sempre atuávamos em parceria com grupos de voluntários, escolas, faculdades. Há tanta coisa linda, mas destaco três: No Chile, a Casa de La Mujer, que procurava fazer da mulher uma agente de transformação através de encontros, dinâmicas de grupo, cursos. Era um trabalho ecumênico, embora tivesse a Igreja Católica como mantenedora. Imagine: uma pastora luterana e eu demos durante dois anos um curso sobre a mulher na Bíblia. Aqui em Juiz de Fora, foi muito forte o contato com as mulheres que faziam parte do Movimento Ecumênico Pró-Moradia, iniciado em 1992 na Campanha da Fraternidade “Onde Moras?” e que resultou na criação dos bairros Vale Verde (1994) e Jardim das Pedras Preciosas (1998). A “garra” e o compromisso dessas mulheres foram “escola” para mim e para muita gente. Também assistir e atuar no Centro Integrado de Apoio à Mulher de Pouso Alegre e Região (CIAMPAR) foi marcante. Lá, atendíamos e acompanhávamos à delegacia ou outros órgão, como Ministério Público ou Defensoria Pública, sempre que necessário, as mulheres vítimas de violência. Mas, a equipe sentiu que isso não bastava. Então se pensou em ajudar a mulher na profissionalização, porque sentimos que ela se sujeitava à violência por não ter como manter a si mesma e os filhos. O CIAMPAR proporcionou e proporciona cursos para cuidadores/as de idosos, empregadas domésticas, babás e, na zona rural, com ajuda da Emater e do Sebrae, oferece cursos de culinária, aproveitando morangos para geleias, licores, bombons e também a comercialização dos produtos.

Mulier – A senhora morou alguns anos no Chile, inclusive após o golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende e instaurou uma das ditaduras mais violentas da América do Sul. Como foi esta experiência?

Irmã Heloisa – A experiência foi única. Quando cheguei lá, em 1988, a ditadura Pinochet já estava “agonizando”. Mas pude participar do “No”, plebiscito que dissolveu a ditadura, e da preparação do povo para isso. Impressionou-me o grau de consciência política do povo pobre, “lascado”, e com a ligação fé e vida das comunidades cristãs. O povo tinha certeza de que Deus não aprovava aquela ditadura.

Mulier – Existiram diferenças entre a ditadura chilena e brasileira, em relação a métodos de repressão e participação social de opositores ao regime de exceção?

Irmã Heloisa – Quanto à repressão, não sei se havia muita diferença, talvez lá faziam “mutirões” de execução. Mas, quanto à participação social, aqui, eram, na maioria, intelectuais, estudantes, classe média. Lá, eram os operários e os trabalhadores rurais as maiores vítimas. Conheci uma senhora pobre que viu em sua casa, no mesmo dia, serem executados o marido, a filha, o genro, o filho e a nora grávida. Ficou apenas com um netinho de cinco meses. Conheci o garoto adolescente com sérios problemas psicológicos. Ele assistiu ao massacre de sua família.

Mulier – Com vê as mulheres alcançando importantes espaços na sociedade, como na presidência do Brasil?

Irmã Heloisa - Com alegria e esperança. Cada dia se confirma o valor da mulher.

Mulier – Acredita em maiores mudanças a partir de agora nas relações de gênero e uma maior presença feminina em posição de maior hierarquia, como em empresas e setores da sociedade?

Irmã Heloisa - Creio, sim, que a cada dia mais a mulher vá encontrar seu verdadeiro lugar na sociedade.

Mulier – E na hierarquia da própria Igreja Católica?

Irmã Heloisa – É meio difícil com o machismo reinante. Seria bom que lembrasse da posição de Jesus e de Maria, que foi uma mulher consciente e comprometida. Basta ver o Magnificat (Lc 1,46-55). O fundador de nossa congregação queria que “fôssemos outras Marias”. E ele era Bispo de Campinas, São Paulo.

Mulier – A Igreja Católica é uma instituição antiga e com um número grande de idosos. Recentemente foram criadas as Pastorais dos Idosos. Como vê o trabalho de tais pastorais?

Irmã Heloisa – Acho importante a Pastoral do Idoso, mas gostaria que não ficasse como muitos grupos de idosos que pensam que jogar bingo, dançar, viajar, preenchem uma vida. Gostaria que a Pastoral visualizasse o trabalho voluntário que é o que realmente realiza qualquer pessoa jovem ou idosa.

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