Doutoras sem diploma: mulheres tiveram papel relevante no desenvolvimento da Medicina, curando mazelas e cultivando ervas medicinais

2 de março de 2013 Comente »
Doutoras sem diploma: mulheres tiveram papel relevante no desenvolvimento da Medicina, curando mazelas e cultivando ervas medicinais

Imagem: Pintura mural de artista romano da escola helenística mostra mulher preparando essências – Reprodução

Jornal Mulier – Outubro de 2006, Nº 33

A Medicina originou-se de práticas mágicas e sacerdotais, tendo ligação direta com a História e a Religião. Assistir impotente ao sofrimento e a morte de companheiros fez os homens se convencerem de que os mistérios que cercavam a doença e a morte eram causados por demônios. Perante o medo do desconhecido, o homem começou a investigar a natureza da própria existência. Nesta reportagem, vamos nos limitar a falar sobre o desenvolvimento da profissão no Brasil.

A mulher teve um papel relevante nos primórdios da Medicina. No Período Colonial (1500-1822), as curandeiras e benzedeiras substituíam a ausência de médicos e cirurgiões com suas palavras, orações e ervas mágicas, que tinham por objetivo afastar as entidades maléficas, os demônios, que, acreditava-se, tomavam o corpo dos pecadores e eram as responsáveis pelas doenças.

Era um saber passado de mãe para filha, necessário para a sobrevivência dos costumes e tradições femininos. Elas conheciam como tratar seus corpos através da experiência trocada com a cultura branca europeia, indígena e negra, recorriam às cerimônias de cura indígena, aos talismãs e amuletos africanos e à intimidade com a flora medicinal brasileira, com a qual preparavam remédios úteis aos cuidados terapêuticos. Segundo a historiadora Mary Del Priore, as mulheres foram por séculos doutoras sem títulos, curando mazelas, praticando enfermagem, abortos, partos e cultivando ervas medicinais.

Estas mulheres despertavam credibilidade e respeito, reforçando o poder que tinham. Mas a crença de que detinham poderes sobrenaturais para tratar a doença a deixaram na mira da Igreja. Esta as via como feiticeiras, pessoas que detectavam e tiravam manifestações de Satã nos corpos dos doentes através de palavras e cânticos ensinados pelo próprio demônio, com o qual tinham um pacto. “A naturalidade e a intimidade com que tratavam a doença, a cura, o nascimento e a morte tornavam-nas perigosas e malditas”, afirma Mary Del Priore.

A ciência médica também perseguiu estas mulheres. Na verdade, elas apenas tentavam adiantar-se à Medicina, ciência que ainda não se mostrava competente para curar doenças de qualquer tipo. Também preservavam a cultura feminina do saber e a intimidade entre si.

Com o tempo, mudaram-se as crenças e as práticas. O Brasil ganhou as suas primeiras faculdades de Medicina em 1808 com a vinda da família real portuguesa. A revolução na Medicina aconteceu principalmente com o desenvolvimento do microscópio, que identificou os germes como causadores de doenças e não mais as forças sobrenaturais. Assim, foram desenvolvidas vacinas, havendo a preocupação com a higienização dos espaços para evitar a proliferação de doenças. Com o desenvolvimento da Química, da Física e da Biologia, surgem novas medicações e meios mais eficientes de detectar e combater moléstias.

As mulheres foram as mais afetadas no processo de instauração da Medicina porque, além de aplicar seus conhecimentos de forma clandestina, foram impedidas por muitos anos de frequentar as universidades.

A Odontologia também se desenvolveu como parte da Medicina, como uma prática rudimentar. Até então, as doenças da boca também eram tratadas por feiticeiros, magos e religiosos ou práticos, que usavam de qualquer tipo de artifícios sem fundamentação. As pessoas acreditavam e se tratavam com qualquer um capaz de curar as dores de dente. No Brasil, barbeiros, cirurgiões e sangradores realizavam extrações dolorosas, sem higiene, em locais pouco apropriados, causando, muitas vezes, infecções e hemorragias, complicações que podiam levar à morte. As medicações e obturações usavam desde ervas, ceras, gomas e resinas, a carnes e excrementos de animais em sua confecção.

Mas a Odontologia surgiu mesmo diante da necessidade de resolver um problema de dimensões epidêmicas: a cárie. Dentes cariados não representavam um problema até a explosão do consumo do açúcar, devido às grandes plantações de cana na América recém “descoberta”. Durante os séculos XVI, XVII e XVIII, houve uma verdadeira epidemia manifestada de forma grave e dolorosa que a Medicina não estava preparada para enfrentar. Nem ao mesmo se sabia a relação entre cárie e açúcar. O caso da rainha Elizabeth I, no século XVI, serve para ilustrar. Ela sofreu com dor de dente da adolescência à velhice. Para evitar o mau hálito decorrente das extensas cáries, ela andava com uma bolsinha escondida por entre as roupas, cheia de doces, que comia periodicamente, piorando, logicamente, a situação.

Não há informações sobre o papel das mulheres em trabalhos de tratamentos dentários. Sabe-se apenas o que era exigido delas e as modas sobre como deveriam cuidar dos dentes. A beleza facial sempre foi mostrada pelos olhos e pela boca. A preocupação em enaltecer a higiene bucal tinha relação com a atração sexual. Vários povos exigiam hábitos de higiene das mulheres para conservação da brancura dos dentes. Elas tinham que lavá-los todas as manhãs. As com dentes largos, feios e desiguais, deveriam apertar os lábios ao sorrir. Alguns povos usavam pedras precisas e metais entalhados nos dentes para demonstrar status, principalmente em épocas especiais, como o início da puberdade e o casamento.

Dentes pretos também já foram moda em regiões da Ásia, como o Japão e o Vietnã. Eram sinônimo de ascensão social, pois, para ficar com os dentes escurecidos, presumia-se que a pessoas consumia muito açúcar, um item caro na época.

Apesar da Odontologia ter surgido oficialmente em 1728, só em 1866 formou-se a primeira mulher dentista da História, Lucy Hobbs. As mulheres ingressaram na carreira, mas só podiam tratar de moças. Quase um século depois, em 1976, em Juiz de Fora, formou-se a dentista Neyde Farinazzo Vitral. A sua história mostra como a profissão foi tornando-se comum entre as mulheres. Funcionária dos Correios, ela resolveu fazer vestibular de Odontologia com 33 anos, já mãe de quatro filhos e contando com total apoio do marido. Neyde está completando 30 anos de profissão e diz não ter sofrido qualquer tipo de preconceito tratando de homens e mulheres.

A dentista gosta muito da profissão, que diz ser gratificante e com a qual fez muitos amigos. Ela destaca o contato com o paciente, sempre tratado com muito carinho, possibilitando a confiança em seu trabalho. Neyde afirma que a Odontologia é quase como a Psicologia. Usou poucas vezes anestesia, pois, afirma, quando o profissional mostra como vai fazer o trabalho, explicando procedimentos, o paciente confia e acredita que não vai sentir dor.

Outra profissional ouvida pelo Jornal Mulier foi a médica Denise Ferreira Rodrigues, 25 anos, formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e residente de Medicina Nuclear. Para ela, a Medicina era um sonho de infância. Diz estar presenciando a era da transformação da profissão, quando as mulheres já são maioria entre os formandos. Segundo Denise, a Medicina exige e precisa de delicadeza, do romantismo e da sensibilidade da mulher. A médica especializou-se em uma área ainda pouco conhecida, que envolve diagnóstico e tratamento com substâncias radioativas. Diz já ter sofrido preconceito em uma cidade pequena onde trabalhou. Uma paciente recusou ser atendida por ela, queria o “doutor”. Como tinha somente a “doutora”, ela mesma atendeu e, hoje, afirma ter criado vínculos afetivos fortes com os pacientes da cidade em questão.

Segundo a médica, a Medicina não tem mais o mesmo glamour do passado. Os pacientes respeitavam mais os médicos, que também eram mais bem remunerados. Hoje o profissional precisa ter vários empregos. Para as mulheres, isso é mais complicado porque tem a dupla jornada de trabalho, e os níveis salariais possivelmente não serão os mesmos dos homens entre aquelas com filhos.

Denise considera como o grande desafio das médicas e dos médicos a especialização, fazendo com que não consigam mais ver o paciente como um todo. Para ela, curar a doença é muito fácil. Difícil é tratar o doente, analisá-lo em todos os contextos (psicológicos, profissional, familiar). O médico precisa ser humano para construir uma boa relação com o paciente. “As pessoas muitas vezes somatizam os problemas, e o médico tem que ser ouvinte para ‘curar’ o paciente”. A médica acredita que a formação cultural, hoje muito exigida no vestibular, pode ajudar na delicadeza necessária para o médico lidar e ter uma boa relação com o paciente.

Fontes

DEL PRIORE, Mary. “História das mulheres no Brasil”. São Paulo: Contexto, 1997.

DESOND, Morris. “A mulher nua – um estudo do corpo feminino”. São Paulo: Editora Globo, 2005.

FREITAS, Sérgio Fernando Torres de. “História social da cárie dentária”. Santa Catarina: Edusc, 2001.

MARGOTTA, Roberto. “História ilustrada da medicina”. São Paulo: Editora Manole, 1998.

Revista “Nossa História”, julho de 2005.

Revista “Dental Capital”, jan/fev/mar de 2000.

Jornal “O Globo”, 27/11/2005, 31/03/2006 e 27/07/2006.

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