Cem anos da I Guerra Mundial: saiba o que mudou na vida das mulheres

16 de abril de 2015 Comente »
Cem anos da I Guerra Mundial: saiba o que mudou na vida das mulheres

Jornal Mulier – Julho de 2014, Nº 126

I Guerra mundial trouxe liberdades nunca antes vivenciadas pelas mulheres, mas não foi tão fácil conquistá-las

A eclosão do primeiro conflito mundial de grande escala que se tem notícia acaba de completar cem anos. É notório apontá-lo como um divisor de águas na vida das mulheres, por ter proporcionado a saída das mesmas de espaços antes culturalmente reservados a elas – o ambiente doméstico – para o mundo público, o mercado de trabalho. Embora essa ideia de alteração das relações entre os sexos a partir daí seja corrente, ao final da guerra foi possível verificar o quanto tais conquistas foram frágeis.

Enquanto milhares de homens foram para os campos de batalha, as mulheres ficaram como soldados na retaguarda, assumindo, orgulhosas, postos de trabalhos antes masculinos: operárias de fábrica de munição, condutoras de bondes, entre tantas outras ocupações. Na França, em 1917, o total de mulheres trabalhando passou de 300 mil para 2 milhões, contando com mulheres solteiras, casadas, inclusive de classes médias e altas.

Diante dessa nova realidade, embora a guerra tenha deixado em segundo plano aspirações feministas, a exemplo do direito ao voto, em nome do esforço pela pátria, as feministas francesas não deixaram de atuar. Elas quiseram fazer da experiência um trampolim para a igualdade profissional, para a abertura de profissões e qualificação das trabalhadoras.

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Uma motorista de ambulância verifica o motor do seu veículo

Segundo Françoise Thébaud, especialista em história das mulheres do século XX, a guerra constituiu para elas uma experiência de liberdade e de responsabilidade sem precedentes: “em primeiro lugar, pela valorização do trabalho feminino ao serviço da pátria e pela abertura de novas oportunidades profissionais, em que as mulheres descobrem, geralmente com prazer, o manuseamento de utensílios e técnicas que desconheciam. A guerra destrói, por necessidade, as barreiras que opunham trabalhos masculinos e trabalhos femininos e que vedavam às mulheres numerosas profissões superiores. A França, que contava em 1914 com algumas centenas de médicas e algumas dezenas de advogadas, permite a Maria Vérone e a Jeanne Chauvin advogar em conselho de guerra e abre às meninas a maior parte das escolas de engenharia ou de comércio. (…) Por toda a parte, as raparigas penetram nos bastiões da alta educação, como a Sorbonne ou Oxford. Por toda a parte, serviços no feminino (café, hotel, comércio, banco, administração) tornam as mulheres visíveis no espaço público e fazem com que as suas qualidades de honestidade e de discrição sejam apreciadas, apesar de algumas vozes discordantes. A maior parte das trabalhadoras toma consciência das suas capacidades e aprecia a sua nova independência financeira, tanto mais que o trabalho de guerra, particularmente nas fábricas de armamento, é um trabalho bem pago”.

No caso dos trabalhos voluntários e de caridade, houve também novidades, segundo a historiografia. Para as moças e mulheres das camadas médias e abastadas, habituadas às atividades de caridade, a guerra foi um período de intenso ativismo, inclusive derrubando barreiras sociais como o rigorosismo da moda e da sociabilidade burguesa: a morte do espartilho, o encurtamento das saias e a simplificação dos trajes.

Nos trabalhos a exemplo da Cruz Vermelha, enfermeiras e auxiliares descobrem o sexo masculino, a carne, as classes populares e povos de cor. Saturados pelo afluxo de feridos, os serviços de saúde militares acolhem milhares de voluntárias, confiam-lhes a direção de hospitais auxiliares ou a condução de ambulâncias, enviando-as, até mesmo, para as frentes de batalha.

An Army nurse assists with treatment of a patient

As enfermeiras, assegura Thébaud, anjo e mãe, personificando a abnegação, é a personagem feminina mais louvada da guerra, tema predileto de artistas. “’A Maior Mãe do Mundo’, diz um cartaz americano da Cruz Vermelha, cujo grafismo – uma enfermeira gigantesca embalando um homem em miniatura imobilizado numa maca – realça um novo relacionamento entre os sexos. Os soldados, frequentemente de origem popular, apreciam o sossego do hospital, mas sentem-se humilhados e infantilizados por essas mulheres distantes, que descobrem as suas fraquezas e os tratam como crianças, para acabar por reenviá-los para a frente”. Daí já se tem uma ideia de como as relações entre os sexos pouco mudaram.

Masculinização da sociedade

A partir do empoderamento feminino frente à guerra, foram retomadas teorias formuladas sobre uma possível mudança orgânica das mulheres a partir do trabalho, prejudicando sua capacidade reprodutiva e pervertendo sua sexualidade. Tais preconceitos foram acentuados na guerra, evocando os perigos para um ser que era considerado inferior física e emocionalmente.

Conforme Françoise Thébaud, as dualidades mostram que, na verdade, “as mudanças devidas à guerra são limitadas, objetiva e subjetivamente, pela manutenção e mesmo pelo reforço dos papéis sexuais tradicionais e por toda uma simbólica que concede à frente de combate e aos combatentes a prioridade econômica, social e cultural”.

Quem, de fato, ganhou maior liberdade foram as jovens operárias, fora da vigilância paterna e em função do contato com camaradas de fábricas além das jovens burguesas pela aventura social e intelectual vivenciada. Em contrapartida, são as mães de família dos meios populares que mais sofreram.

O caso dos Estados Unidos mostra algumas dificuldades. Até por sua entrada tardia na guerra, em 1917, não foram oferecidas grandes vantagens às mulheres. Mulheres brancas ocuparam espaços deixados por homens brancos na indústria pesada, escritórios e transportes. Às mulheres negras, àquela época trabalhadoras agrícolas e empregadas domésticas, sobraram empregos de mulheres brancas e homens negros, mais duros e mal pagos.

Nos campos da França e da Itália, as camponesas substituíam os homens mobilizados e os animais requisitados. O trabalho opressivo e quotidiano e a grande responsabilidade como guardiãs de costumes e da terra limitaram a vida das mesmas, que também passaram a ser mais vigiadas por mulheres mais velhas e irmãos em função dos perigos que poderiam representar maior contato com soldados e maior circulação de dinheiro.

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Na falta dos homens até o Estado interveio para ser Estado-pai, simultaneamente alimentador e opressor, chegando a culpar a mulher pelo trabalho fora de casa e a menor atenção aos filhos. Na Grã-Bretanha, houve rápida expansão de campanha de proteção materna e infantil. Na Alemanha, o governo tentou reprimir mais severamente a contracepção e o aborto, baseado em uma ideologia organicista para a qual a maternidade era uma função vital que não poderia ser deixada ao arbítrio individual, mesmo diante de situação tão adversa.

Com o fim do conflito, que aparentemente tinha até mesmo estreitado as relações entre os sexos – as primeiras cartas de soldados falam de amor filial, pelas mulheres e filhos –, fortificando sentimentos familiares, a realidade foi outra. Muitas mulheres foram rotuladas de oportunistas e incapazes em suas atividades laborais, sendo convidadas a regressar ao lar e às tarefas femininas em nome do direito dos antigos combatentes e da reconstrução nacional.

“Umas resistem, outras aceitam, extenuadas por anos de trabalho e de solidão, ou entregues à alegria dos reencontros. O fim do conflito, em que nunca tantos casais se haviam unido, parece nitidamente marcado por uma ‘onda de privatização’ centrada na família e na criança”.

A desmobilização feminina é rápida e brutal, especialmente para as operárias de guerra, as primeiras despedidas. O que foi feito parecia ter razões para lá de econômicas, mas também psicológicas: reafirmar uma identidade masculina abalada por anos de combates, apagar a guerra e responder, num período de febre social e reação política, ao profundo desejo dos combatentes de restaurar o antigo mundo. A guerra teria apenas aberto um parêntese antes do retorno à normalidade, um teatro de sombras, já que as mulheres na retaguarda só aparentemente desempenharam um papel principal. Também teria bloqueado o movimento de emancipação que acontecia em toda a Europa no início do século XX, representado pela nova mulher econômica e sexualmente independente e num poderoso movimento feminista.

Avanços

Apesar de tudo, embora não tenha mudado a divisão sexual do trabalho, houve, sim, avanços para as mulheres. O desmonte de ofícios de costura e da indústria a domicílio foi acompanhado por maior presença feminina na grande indústria moderna (metalurgia moderna e indústria elétrica). Elas aparecem nas linhas de montagem fabris, surgem como agentes da modernidade, mais aptas que os companheiros, envelhecidos e traumatizados, a abraçar as novidades do século.

Outra constatação foi o desenvolvimento dos empregos terciários, prestes a se tornarem lugares privilegiados de atividade feminina, no comércio, bancos, serviços públicos e profissões liberais. A feminização do setor terciário permitiu às jovens da burguesia exercer uma profissão e obter relativo direito ao trabalho.

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Para Thébaud, a conquista de uma liberdade de atitudes e de movimento é a aquisição mais evidente e geral resultante da guerra na vida das mulheres, aprendida na solidão e no exercício de responsabilidades. Elas se livram dos entraves do espartilho, roupas compridas e apertadas, chapéus: o corpo feminino começou a mexer-se, uma revolução do cotidiano que implicou uma nova relação com o corpo e consigo mesmas.

Fonte

THÉBAUD, Françoise. A Guerra: o triunfo da divisão sexual. In DUBY, Georges; PERROT, Michelle. “História das Mulheres no Ocidente”.  V. 5. Porto: Edições Afrontamento; São Paulo: Ebradil, 1991.

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