Por séculos, mulheres foram tidas como cúmplices do Diabo

2 de março de 2013 Comente »
Por séculos, mulheres foram tidas como cúmplices do Diabo

Imagem: “Eva”, de Lucas Cranach, século XIV – Reprodução

Jornal Mulier – Fevereiro de 2006, Nº 25

A mulher ignóbil, a mulher pérfida, a mulher vil

Macula o que é puro, rumina coisas ímpias, estraga as ações (…).

A mulher é fera, seus pecados são como areia.

Não vou entretanto caluniar as boas a quem devo abençoar (…).

Que a má mulher seja agora o meu escrito, que seja meu discurso (…)

Toda mulher se regozija de pensar no pecado e de vivê-lo.

Nenhuma, por certo, é boa, se acontece no entanto que alguma seja boa.

A mulher boa é coisa má, e quase não há nenhuma boa.

A mulher é coisa má, coisa malmente carnal, carne toda inteira.

Dedicada a perder, e nascida para enganar, perita em enganar,

Abismo inaudito, a pior das víboras, bela podridão,

Atalho escorregadio (…), coruja horrível, porta pública, doce veneno (…)

Ela se mostra inimiga daqueles que a amam, e se mostra amiga de seus inimigos (…)

Ela não exclui nada, concebe de seu pai e de seu neto.

Turbilhão de sexualidade, instrumento do abismo, boca dos vícios (…),

Enquanto as colheitas forem dadas aos cultivadores e confiadas aos campos,

Essa leoa rugirá, essa fera maltratará, oposta à lei.

Ela é o delírio supremo, e o inimigo íntimo, o flagelo íntimo (…)

Por suas astúcias uma só é mais hábil que todos (…).

Uma loba não é mais má, pois sua violência é menor,

Nem uma serpente, nem um leão (…).

A mulher é uma feroz serpente por seu coração, por seu rosto ou por seus atos.

Uma chama muito poderosa rasteja em seu seio como um veneno.

A mulher má se pinta e se enfeita com seus pecados,

Ela se disfarça, ela se falsifica, ela se transforma, se modifica e se tinge (…).

Enganadora por seu brilho, ardente no crime, crime ela própria (…)

O quanto pode, ela se compraz em ser nociva (…).

Mulher fétida, ardente em enganar, flamejante de delírio,

Destruição primeira, pior das partes, ladra do pudor.

Ela arranca seus próprios rebentos do ventre (…).

Ela trucida sua progenitura, abandona-a, mata-a, num encadeamento funesto.

Mulher víbora, não ser humano, mas fera selvagem, e infiel a si mesma.

Ela é assassina da criança e, bem mais, da sua em primeiro lugar,

Mais feroz que a áspide e mais furiosa que as furiosas (…).

Mulher pérfida, mulher fétida, mulher infecta.

Ela é trono de Satã; o pudor está a seu cargo; foge dela, leitor.

Versos redigidos no século XII pelo Monge Bernard de Morlas, em Cluny, na França

 

O medo do Diabo sempre existiu em todas as sociedades ao longo da história. Ele seria o responsável por todos os males na Terra, das epidemias às catástrofes naturais e à perdição do gênero humano. E, como não poderia deixar de ser, o homem teve que procurar um responsável por todo o sofrimento. Encontrou a mulher, acusada de ter introduzido o pecado na Terra, a desgraça e a morte, ao cometer a falta original e comer o fruto proibido. Assim como os idólatras, os muçulmanos e os judeus, ela foi considerada a cúmplice preferida de Satã, por juízes, pessoas comuns, pela Igreja e pela imprensa, que ajudou a conhecer o rosto e os dons deste inimigo dos homens.

A Igreja se utilizou intensamente dos sermões como meio eficaz de cristianizar a população e difundir sem descanso o medo da mulher. Usou-se até mesmo o significado da palavra “femina” (fide + minu), que quer dizer “menos fé”, para alertar os homens. Afirmou-se: a mulher, por representar um ser mais frágil, era mais propensa a sucumbir à tentação diabólica, sua imaginação se sobrepunha à razão e à prudência e se deixava facilmente ser enganada pelo Demônio. Ideias comuns em todas as religiões da Europa.

Os escritos religiosos eram claros. “A mulher (…) é um verdadeiro Diabo, uma inimiga da paz, uma fonte de impaciência, uma ocasião de disputas das quais os homens devem manter-se afastados se quer gozar de tranquilidade”, dizia o clérigo André Le Chapelain. Na obra do pregador Thomas Murner, de 1512, a mulher é tida como um diabo doméstico, infiel e vaidosa, um chamariz do qual Satã se serve para atrair o outro sexo ao inferno.

Esse ódio à mulher chegou aos resultados mais trágicos durante os séculos XV e XVI, no início da Modernidade, quando mulheres passaram a ser acusadas e sentenciadas como bruxas. Contraditoriamente em um período da história em que progressos científicos, artísticos e intelectuais mudavam radicalmente as concepções sociais, econômicas e religiosas, quando a razão tentava explicar toda a ideia de criação do universo e do ser humano.

No imaginário popular e religioso, as bruxas estavam à solta. Em suas vassouras aterrorizavam cidades e aldeias. A perversidade feminina estava presente a serviço dos mandos do Demônio e precisava ser contida. Não eram necessárias muitas provas. Crises sociais, políticas, calamidades naturais ou qualquer acontecimento anormal seriam capazes de detonar a morte de mulheres na fogueira. Arder no fogo era uma forma piedosa de salvar aquela alma feminina enganada pelo Demônio.

Segundo Anne LLewellyn Barstow, no livro “Chacina de Feiticeiras”, as acusações de feitiçaria envolviam uma perseguição às mulheres em virtude de sua sexualidade. Para o historiador Jean Delumeau, a atitude masculina em relação à mulher sempre oscilou entre a atração, a admiração e, ao mesmo tempo, o medo e a hostilidade. O poder da fecundidade e o mistério da maternidade, do corpo e do desejo feminino proporcionavam um entendimento de que a mulher sempre teve uma relação mais próxima com a natureza e seus segredos. Assim, acreditava-se que ela tinha o poder de profetizar, de curar ou até mesmo de prejudicar quem quisesse com misteriosas receitas.

No terceiro milênio, o Diabo não tem mais superpoderes de outrora, perdendo espaço para a razão em detrimento da superstição. O mal passou a ser encarado como algo que existe dentro das pessoas e que pode ser controlado em grande parte pela moralidade religiosa. Mas Satã não deixou de estar presente. A culpa recai hoje sobre os terroristas ou sobre os valores liberais e imorais da sociedade ocidental. Em algumas repúblicas ou monarquias fundamentalistas islâmicas, como o Afeganistão, os talibãs impunham às mulheres o uso das burcas – vestimenta que cobre todo o corpo e rosto -, tentando impedir a ação subversiva do Demônio por meio da liberação dos costumes. Como podemos ver, a influência do Diabo é menor, mas continua inspirando medo, ainda tenta-se relacionar a mulher como presa fácil de suas maldades.

Fontes

BARSTOW, Anne Llewellyn. “Chacina de feiticeiras”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.

DELUMEAU, Jean. “História do medo no Ocidente (1300-1800)”. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Revista “Super Interessante”, fevereiro de 1993 e março de 2002.

Revista “Carta Capital”, 17/04/2002.

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