Niéde Guidon – arqueóloga e diretora do Museu do Homem Americano

3 de março de 2013 1 Comentário »
Niéde Guidon – arqueóloga e diretora do Museu do Homem Americano

Jornal Mulier – Março de 2010, Nº 74

Segundo Niéde Guidon, pode ter existido no Brasil uma sociedade em que as diferenças de gênero não pesassem nas estruturas de poder

Mulier – Poderia contar um pouco sobre sua origem e formação?

Niéde – Nasci em Jaú, São Paulo. De Jaú, fui para Pirajuí, onde fiz o grupo escolar e o ginásio, logo para o Colégio Progresso Campineiro, em Campinas, cidade em que fiz o científico, em seguida para São Paulo, onde fiz o bacharelado em História Natural pela USP. Depois, de 1960 a 1963, em Paris, fiz Arqueologia na Sorbonne. Voltei a São Paulo e trabalhei no Museu Paulista (hoje Museu de Arqueologia e Etnologia da USP), de onde sai em 1964 e voltei à França. Em Paris, trabalhei no Centro Nacional da Pesquisa Científica e entrei na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em 1977, na qual fui aposentada em 1998.

Em 1986, a convite do então reitor Paulo Renato Costa Sousa, fui comissionada na UNICAMP, e lá fiquei até 1991, quando vim morar em São Raimundo Nonato, ao lado do Parque Nacional Serra da Capivara, cedida pelo governo francês ao IBAMA para coordenar os trabalhos no Parque. Sou formada em História Natural pela Universidade de São Paulo (1959), tenho uma especialização em Arqueologia Pré-histórica pela Université de Paris IV (Paris-Sorbonne) (1962), um doutorado em Pré-História pela Université Paris I (Panthéon-Sorbonne) (1975) e um pós-doutorado pela Université de Paris I (1984).

Mulier – Como avalia o trabalho da Arqueologia no Brasil hoje?

Niéde – Eu vivo trabalhando aqui na Serra da Capivara, não estou a par de tudo o que se está se fazendo. Mas sei que uma equipe da USP trabalha muito na Amazônia e que a equipe de Universidade Federal de Pernambuco também trabalha muito aqui no Nordeste. Nós, aqui, trabalhamos o ano todo, e as descobertas se sucedem, cada vez mais sítios com arte rupestre, belíssimos. Ultimamente encontramos sepultamentos e sítios com vestígios que nunca havíamos visto. Há trabalho ainda para umas duas gerações.

Mulier – Suas principais descobertas arqueológicas foram no Piauí? O que a levou à região e quais as descobertas mais importantes da região de São Raimundo Nonato?

Niéde - Em 1963, eu era arqueóloga do Museu Paulista, e prefeitos da região de São Raimundo Nonato da época levaram fotografias de algumas pinturas rupestres. Imediatamente vi a diferença delas com tudo o que era conhecido no mundo em matéria de arte rupestre. Esse mesmo ano tentei vir conhecer a região, de carro desde São Paulo, pela Rio-Bahia. Cheguei a Petrolina, para seguir até São Raimundo Nonato, e a chuva tinha levado a estrada, não sendo possível continuar. Consegui voltar em 1970, a população local me mostrou alguns locais com pinturas e prometi voltar. Voltei em 1973 com uma pequena equipe, depois em 1975. Finalmente, em 1978, vim como uma equipe franco-brasileira numerosa e começamos a escavar, entre outros, o Boqueirão da Pedra Furada, hoje o sítio arqueológico mais antigo das Américas.

Meu trabalho principal foi ter organizado inicialmente a Missão Franco-Brasileira do Piauí, do Ministério de Relações Exteriores da França, da qual fui chefe até minha aposentadoria. Essa missão reuniu um grupo excepcional de pesquisadores capazes não somente de estudar esta região, mas de conseguir a criação e a implementação de um Parque Nacional, defendendo um dos mais preciosos patrimônios do Brasil e da Humanidade e, ao mesmo tempo, procurando criar um novo modelo para um desenvolvimento equilibrado, sustentável e socialmente justo no Nordeste. Em 1986 criamos a Fundação Museu do Homem Americano.

Mulier – Você dirige o Museu do Homem Americano. Quando foi inaugurado e qual a sua importância e o trabalho que realiza?

Niéde – O Museu do Homem Americano foi criado com a finalidade de expor ao público o acervo obtido pelas pesquisas na região, relatando toda a pré-história da região. Foi inaugurado em 27 de julho de 1998 e hoje apresenta os resultados de 37 anos de pesquisa. Ali se revela uma parte da enorme riqueza arqueológica em instrumentos fabricados pelo homem, sua arte rupestre e esqueletos. Sua concepção levou em consideração que a Pré-História e a Arqueologia são ciências que sofrem mutações rapidamente à medida que as pesquisas permitem que novos vestígios sejam descobertos. Desde sua inauguração, a exposição permanente foi atualizada três vezes para que o público possa acompanhar o progresso das pesquisas. 

Mulier – Afinal, baseado em seu trabalho, há indícios da chegada do homem à América a partir de quando? E como a comunidade científica internacional vê esta data?

Niéde - No Boqueirão da Pedra Furada, encontramos os mais antigos vestígios (até hoje) de atividades humanas nas Américas. A crítica de alguns colegas norte-americanos, sobre vestígios em pedra que teriam, para eles, sido quebrados naturalmente, foi refutada por análises realizadas por colegas europeus e americanos da Texas A & M que os analisaram ao microscópio eletrônico e afirmaram que os vestígios mais antigos da Pedra Furada, datados em 100.000 anos, foram fabricados e utilizados pelo homem.

Paralelamente, trabalhos realizados no Chile, no México e na Costa Atlântica dos Estados Unidos forneceram novos dados que se somam a esta descoberta. Em dezembro de 2006, organizamos o ‘’Segundo Simpósio Internacional sobre o Povoamento das Américas’’. Como síntese das conclusões do Simpósio foi possível constatar que se multiplicaram as descobertas de vestígios arqueológicos e paleontológicos que subsidiam modelos sustentando a pluralidade de vias do povoamento do continente americano, em diferentes épocas.

Avanços das técnicas de datações físico-químicas fornecem hoje dados mais precisos sobre os diferentes momentos de chegada das várias levas populacionais. Nesse contexto, as pesquisas arqueológicas e paleontológicas desenvolvidas no Brasil fornecem dados para sustentar um modelo mais preciso, construído com base nos dados arqueológicos descobertos a partir da década de 1960 na região de Lagoa Santa, Minas Gerais, e nas pesquisas realizadas na Serra da Capivara, Piauí, desde a década dos anos 1970.  Resultados de novas pesquisas independentes confirmaram a natureza antrópica (produzida pelo homem) dos instrumentos de pedra lascada encontrados no Sítio do Boqueirão da Pedra Furada. Esse resultado, confirmado durante o simpósio, deve causar ainda maior impacto entre a comunidade científica internacional, ao ser publicado num periódico científico de alta divulgação, no exterior.

Mulier – Baseado na Arte Rupestre da Serra da Capivara, o que podemos conhecer sobre o modo de viver de mulheres e homens?

Niéde – Podemos, sim, identificar elementos de diversidade cultural. Modo de viver é uma categoria de saída construída a partir da convergência de elementos diversificados da cultura. Sabemos hoje que os povos que aqui viviam eram caçadores coletores, vivendo em uma região com clima tropical úmido, muito rica em fauna e flora. Somente a partir de 10.000, as chuvas diminuíram, mas a aridez atual é resultado da ação do homem moderno. Podemos afirmar que esses povos pré-históricos tinham uma cultura muito desenvolvida, com excelente tecnologia lítica (referente à pedra). E suas pinturas mostram que sua arte, uma forma de gravar sua história, era também muito rica.

Mulier – Pode ter existido uma sociedade matriarcal no Brasil? 

Niéde – Pode ter existido uma sociedade em que as diferenças de gênero não pesassem nas estruturas de poder. Tudo indica que para a sobrevivência do grupo era necessário que todos tivessem um acesso igual à tecnologia de sobrevivência. Chamou a atenção que a presença de objetos de caça e assimiláveis à cultura patriarcal fizessem parte do equipamento funerário de mulheres.

Mulier – Como vê a presença das mulheres na Ciência no Brasil e no mundo em comparação a quando se formou? 

Niéde – Existe, atualmente, um acesso igualitário. Mas o que também é igualitário é a qualidade do ensino público em constante processo de degradação. O gênero não pesa hoje nas possibilidades de trabalho científico, o que pesa é a formação de base insuficiente do ensino público, o que produz os mesmo efeitos nocivos para a sociedade, sem diferenças.

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1 Comentário

  1. Aldima Araujo abril 8, 2013 at 11:46 - Reply

    Sou suspeita para falar de Drª Niède Guidon, sou fâ dela pela própria existência, fora isso, não sou quem vou dizer da competência e valor, aliás, ela não precisa de alguém para fazer isso, seu trabalho já fala por tudo. O que posso dizer que é uma covardia ver tanto trabalho e conhecimento serem negligenciado e as vezes até menosprezado, o que é um admirável, visto todos os benefícios que a cidade, o estado e o país recebeu de presente pela sua eficiência.

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