Mulheres indígenas lutam por direitos na América Latina e Caribe

2 de março de 2013 Comente »
Mulheres indígenas lutam por direitos na América Latina e Caribe

Foto: ONU Mulheres

Jornal Mulier – Dezembro de 2010, Nº 83

As populações ameríndias vivem séculos de perdas: terras, meios de sobrevivência e vidas. Após a colonização europeia a partir dos séculos XV e XVI, os povos indígenas da América Latina e Caribe foram torturados, mal tratados, discriminados, dizimados. Entretanto, as comunidades remanescentes ainda lutam pela manutenção de seus costumes, crenças e pela sobrevivência. Como em qualquer sociedade marcada pelas dificuldades e carências, as mulheres indígenas são as mais atingidas, discriminadas, violentadas, mas também mostram a força da superação e estão se unindo para mudar sua realidade.

E elas merecem até um dia especial, o Dia Internacional das Mulheres Indígenas, comemorado em 5 de setembro. É uma homenagem à líder da etnia quéchua, Bartolina Sisa, morta em 1782, por se opor à dominação e opressão dos conquistadores à resistência anticolonial da região conhecida como Alto Peru. A luta de organizações de mulheres indígenas pela garantia de direitos coletivos – dimensão territorial, cultural e política – e direitos individuais – direito a não-violência e não-exclusão – é reconhecida e apoiada por entidades como a ONU, através da ONU Mulheres.

A ONU Mulheres, por meio do Programa Regional Gênero, Raça, Etnia e Pobreza, apoia a produção de dados estatísticos separados por gênero e etnia, o incentivo à participação política de mulheres indígenas e a produção de conhecimento. Tornar a população indígena visível através de dados e informações nacionais, considerando suas bandeiras de luta, é uma maneira de provocar o Estado a realizar políticas públicas inclusivas, reconhecendo as diferenças e as peculiaridades das demandas provenientes dos movimentos de mulheres indígenas.

Contra a discriminação

O racismo e a discriminação são uma realidade na vida das populações indígenas em toda a América Latina e Caribe. Mas alguns países têm promovido avanços, como a Bolívia, onde foi aprovado, em setembro de 2010, um projeto de lei de Luta contra o Racismo e Toda Forma de Discriminação pelo Legislativo. A lei pretende combater a violação de direitos humanos e a marginalização social e econômica de minorias étnicas bolivianas. Prevê a criação de mecanismos e procedimentos para a prevenção e punição de crimes de racismo e discriminação principalmente contra indígenas, que são 60% da população na Bolívia. O projeto tem sido criticado porque penaliza inclusive a mídia e órgãos públicos que divulguem informações discriminatórias ou racistas. Está sendo interpretada como lei que viola a liberdade de expressão. As organizações de povos indígenas, no entanto, veem a lei como um instrumento capaz de combater situações de racismo e discriminação na grande mídia.

O racismo, a discriminação e o descaso estão diretamente relacionados às condições precárias de vida. Pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostra que em média os integrantes de comunidades não minoritárias ganham quase 40% mais que as populações indígenas – maioria demográfica em vários países – e os negros latino-americanos no Brasil, na Bolívia, no Chile, no Equador, na Guatemala, no Paraguai e no Peru. Os desníveis salariais podem ser resultado do nível educacional, que leva a uma segregação ocupacional, segundo o BID. As minorias étnicas, por exemplo, estão sub-representadas entre os empregadores, que têm maiores salários. O BID ressalta que embora as políticas sociais e de desenvolvimento incentivem a universalização da escola, a educação para as populações indígenas é questionável em relação a sua qualidade. O estudo sugere a adoção de medidas para ajudar a superar estes obstáculos, como investimento em educação pública e programas de ação afirmativa em matéria educacional e capacitação. Também fala da importância de se ter uma atenção especial com as meninas indígenas, duplamente discriminadas: como mulheres e como integrantes de comunidades minoritárias.

Tal preocupação já vem sendo trabalhada por uma liderança feminina da Guatemala, a parlamentar indígena Otilia Lux de Cotí. Deputada com notável atuação no Congresso, ela também já foi ministra da Cultura e Esportes (entre 2000 e 2003), ocupou o cargo de Comissária para o Esclarecimento Histórico sobre a Violação dos Direitos Humanos e Atos de Violência na Guatemala e é membro do Fórum Permanente de Questões Indígenas das Nações Unidas. Em 2005, recebeu o Prêmio “Bartolomé de las Casas”. A premiação foi um reconhecimento a sua liderança na defesa dos direitos humanos e dos povos indígenas, por sua ativa participação no movimento pela dignidade das mulheres. Otilia impulsiona a criação de leis em favor dos direitos das mulheres contra o feminicídio, o tráfico e a exploração de crianças e adolescentes. Para o próximo ano, quer um incremento no orçamento destinado aos programas voltados para as mulheres. Ela afirma que no país existe pobreza porque as mulheres indígenas e afrodescendentes são excluídas. “Meu trabalho consiste em incidir nas declarações para que os Estados também sejam conscientes de que devem ser mais equitativos no orçamento nacional e nas políticas, nos programas, garantindo mais participação de mulheres indígenas, afrodescendentes e jovens também. Temos que pensar na juventude e para quem é levada a transferência de sabedoria” disse ao Boletim da ONU Mulheres “Gênero, Raça e Etnia”.

O direito a terra

A situação de pobreza e carência dos povos indígenas da América Latina e Caribe está relacionada à expropriação de suas terras. Segundo o antropólogo Gersem Baniwa, representante indígena no Conselho Nacional de Educação no Brasil, em entrevista ao jornal “O Globo”, “os povos indígenas só podem continuar com suas culturas, tradições, línguas, mitologias, cosmologias, filosofias, seus sistemas econômicos e jurídicos e políticos se continuarem tendo espaços territoriais e processos educativos próprios”. Eles precisam de territórios suficientes para exercício da vida coletiva, pois vivem basicamente de caça e pesca, agricultura itinerante, de rituais, de cerimônias, de economia recíproca e de solidariedade.

A expulsão de suas terras e a invasão das mesmas por grupos interessados em recursos naturais, como madeireiras e mineradoras, levou, além da perda de tradições, ao empobrecimento da população. Migrando para cidades, sem educação e qualificação para as atividades requeridas pela zona urbana, são explorados, ganham pouco, são vítimas de trabalho escravo. As mulheres recorrem a empregos domésticos e pela discriminação são ainda menos remuneradas, como mulheres e indígenas.

No entanto, nas aldeias, também atingidas pelas condições difíceis de vida, como a erosão do solo e a contaminação da água pelo mau uso ou pelas mudanças climáticas, as mulheres estão promovendo importantes mudanças. Como as responsáveis pelo sustento de suas famílias, muitas precisam caminhar longas distâncias para conseguir água e aprendem a manejar a terra de forma sustentável. Na Colômbia, 900 mulheres indígenas e camponesas trabalham cultivando a terra usando sementes compatíveis com o ecossistema e sem aplicar agrotóxicos. A terra antes desertificada agora gera feijão, melão, mandioca, milho e verduras. Racionaram água na estação seca, regando as plantações aos poucos, usando esterco animal como adubo e a folha de mandioca e da bananeira para manter a umidade da terra. Além de recuperar o solo e garantir o alimento, as mulheres da ONG “Mãos de Mulher” conquistaram autonomia econômica.

É conhecida a capacidade feminina para elaborar ervas, remédios medicinais e alimentos de alto valor nutritivo, vitais para combater a fome da comunidade. Na região de Paucará, no Peru, com altos índices de desnutrição, Marina Huamaní foi premiada pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) por ter criado receitas de alto valor nutritivo. Ela foi uma das beneficiadas pela FAO, que procura fortalecer as organizações comunitárias, resgatar o consumo de alimentos tradicionais e conectar a produção agrícola com o mercado para melhorar a renda familiar e garantir a segurança alimentar.

A busca da liderança

Apesar de seus reconhecidos trabalhos nas comunidades, as mulheres indígenas também encontram discriminação dentro dos povoados. As indígenas do Paraguai, durante encontro realizado em setembro no país, “Intercâmbio de Saberes para Construir a Cidadania”, disseram que os homens não querem que ocupem postos de liderança. No Paraguai, a liderança feminina indígena cresce dentro das comunidades e ganha protagonismo nacional por sua luta pelos direitos de seus povos e contra a discriminação de gênero. Estela Maris Alvarez, da etnia ensex, no Chaco paraguaio, é uma liderança. Como afirma à agência de notícia “Inter Press Service”, não é fácil uma mulher tomar decisões em um povoado indígena. Mesmo quando ela se perfilava como dirigente, não era convidada para as grandes reuniões dos caciques, mas ia mesmo assim. Nas comunidades indígenas do Chaco paraguaio, há caciques com atitudes autoritárias e violentas. Dentro dessa conduta patriarcal, a violência contra as mulheres se mantém como uma situação recorrente e aceita. No entanto, a líder lembra que por mais que isso faça parte de cultura da comunidade, gera discriminação e deve ser erradicada.

A busca por melhores condições de vida e de sobrevivência tem levado à união de forças entre as mulheres indígenas de vários países latino-americanos e caribenhos. Muitas denunciam violências, chegam aos espaços de poder e decisão como legisladoras que lutam pelos direitos das mulheres. Muito ainda há para se avançar, na conquista efetiva de direitos como acesso à saúde e educação diferenciadas, de acordo com a multiculturalidade, proteção contra a violência e na promoção de políticas públicas específicas.

No Brasil, em 2008, foi sancionada uma lei obrigando o ensino de história e da cultura indígenas nos ensinos fundamental e médio. Segundo o antropólogo Gersem Baniwa, “a lei é importante porque estimulará a produção de livros didáticos que tratem de forma adequada as realidades históricas e atuais dos povos indígenas, sem os preconceitos, os estereótipos e as imagens deturpadas que a literatura colonialista tradicional produziu e divulgou nas escolas e na mídia”. Será um desafio, para Baniwa, pois os livros têm que ser produzidos e dependem de financiamento governamental. Outro desafio será estimular os povos indígenas a escrever livros e se articularem para que a lei seja cumprida.

Fontes

Boletim Informativo UNIFEM Brasil e Cone Sul “Gênero, Raça e Etnia”, N° 12, Setembro de 2010. http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00001340.html.

Agência de Notícias “Inter Press Service”. Notícias publicadas nos dias 05/0/2010 (Mulheres – Peru: Invenção e tradição, a receita que alimenta), 10/11/2009 (Mulheres – Colômbia: Terra e dignidade se recuperam juntas / Mulheres – Paraguai: Liderança de mulheres indígenas, um valor em alta) e 16/10/2009 (Mulheres – América Latina: Mulheres, negros e indígenas ganham menos). http://www.ips.org/ipsbrasil.net/_focus/mulher.php.

Jornal “O Globo”, 19/04/2008.

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