Guerra das Pimentas representa a coragem das mulheres pernambucanas

12 de março de 2015 Comente »
Guerra das Pimentas representa a coragem das mulheres pernambucanas

Jornal Mulier – Julho de 2013, Nº 114

Para expulsar os invasores holandeses, mulheres lutaram com todas as armas para proteger suas terras e família

A História predominantemente foi escrita por homens, e estes cuidaram de exaltar o seu papal nos grandes acontecimentos que marcaram as civilizações. Mas, nos últimos anos, pesquisas historiográficas e feministas estão reavaliando o papel das mulheres, tentando superar um discurso miserabilista de opressão e mostrar a ação feminina, a plenitude de seus papéis, lembra a historiadora Michelle Perrot, na tentativa de dar visibilidade à presença real das mesmas na história mais cotidiana.

Diante dessa afirmação, o Jornal Mulier resgata um acontecimento pouco lembrado ou mesmo reconhecido pela historiografia brasileira, que envolveu as mulheres pernambucanas. O ano foi 1646. O local, o vilarejo de Tejucupapo, situado próximo às praias de Ponta de Pedras e Catuama, no litoral norte do estado de Pernambuco, distante cerca de 60 km da cidade de Recife.

O episódio ficou conhecido como um dos mais interessantes do Período Colonial brasileiro, uma batalha contra os invasores holandeses, quando pela primeira vez registrou-se a participação das mulheres em conflito armado, embora as armas utilizadas fossem bem pouco convencionais.

Paus, água fervente e pimenta

Centenas de holandeses ainda residiam em Pernambuco, apesar de praticamente terem perdido o domínio que durante algum tempo mantiveram sobre quase todo o território pernambucano e nordestino – a invasão holandesa durou de 1630 a 1654. Mas, naquele momento, encontravam-se cercados, não chegando aos mesmos abastecimento por meio de navios ou estradas, bloqueadas ou emboscadas pelos pernambucanos.

Necessitados de alimentos, aproximadamente 600 deles, saídos por mar do forte Orange, na ilha de Itamaracá, sob o comandado do almirante Lichthant, tentaram ocupar Tejucupapo, onde esperavam encontrar alimentos, como farinha de mandioca, legumes, frutas e o caju, excelente para curar o escorbuto, causado pela falta de vitamina C no organismo, doença que acometeu muitos holandeses sitiados pela fome e a umidade do local.

A invasão foi planejada para um domingo, pois os holandeses esperavam contar com menor resistência no vilarejo neste dia, quando os homens geralmente iam a Recife vender nas feiras da capital os produtos da pesca. Não contavam, no entanto, com informações antecipadas dos moradores de sua aproximação, que iniciaram uma reação, tendo à frente quatro mulheres: Maria Quitéria, Maria Clara, Joaquina e Maria Camarão. Esta última, na ocasião, percorreu o vilarejo com o crucifixo em punho convocando as mulheres a pegarem em armas na luta contra as tropas inimigas.

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Os poucos homens ocuparam-se em emboscar os assaltantes, atacando-os à bala e não lhes dando sossego. As mulheres, em contrapartida, escondidas em trincheiras, atacavam os holandeses com a mistura jamais esperada por eles: pimenta diluída em água fervente. Os olhos dos invasores eram o alvo, e a surpresa foi o melhor ataque.

A Batalha do Tejucupapo, como ficou conhecida (ou Guerra das Pimentas), é um marco na história do país porque, além de ser o primeiro registro da participação feminina em conflito armado, uma das poucas batalhas a envolver a participação coletiva de mulheres, foi reconhecida a luta delas com bravura, ao utilizar-se de todo tipo de armamento disponível: chuços (pequenas lanças), pedaços de pau, água fervente, pimenta, além das poucas armas de fogo.

O motivo da atitude das mulheres guerreiras não foi exatamente político ou religioso, mas a defesa da vila, suas vidas e de seus filhos. O conflito levou à morte de muitos holandeses. Não foi decisiva para a expulsão total dos holandeses do Brasil anos mais tarde e, talvez por isso, e por ter sido protagonizada por mulheres, não consta nos livros de História.

Reconhecimento pela arte

Apesar de pouco citada pela historiografia nacional, a Batalha do Tejucupapo é motivo de orgulho para a localidade, hoje um pequeno distrito do município de Goiana, especialmente pelas mulheres.

Pesquisas arqueológicas permitiram a recuperação do perímetro da trincheira usada pelas valentes mulheres, onde foi construído um obelisco em homenagem às heroínas do Tejucupapo. No mesmo lugar, desde 1983, a comunidade local encena uma vez ao ano, sempre no último domingo do mês de abril, o espetáculo teatral “Heroínas de Tejucupapo”, no alto da montanha onde ocorreu o conflito, retratando a vida das mulheres que lutaram contra os invasores e contra o preconceito, uma verdadeira aula de história e determinação.

Vídeo 

A idealizadora do projeto é a enfermeira e funcionária pública, Luzia Maria da Silva, ajudada pelo seu filho José Augusto, coordenador do projeto. A peça conta com um elenco quase todo feminino, formado por “atrizes” recrutadas entre as próprias tejucupapenses, como donas de casa, servidoras públicas e pescadeiras, como são chamadas aquelas que vivem da maré, catando mariscos e ostras para comercialização. Mais de 300 moradoras(es) locais trabalham na montagem, atraindo cerca de oito mil pessoas para o vilarejo, vindas de várias cidades da região, especialmente habitantes de Goiana, Recife e Olinda. A encenação do espetáculo teve sua 20ª edição este ano de 2013.

A iniciativa tem servido para a reconstrução da história de luta das mulheres pernambucanas e foi inspiração para a criação de documentários, livros composições musicais, registros em jornais, revistas e cordéis.

Também foi tema de pesquisa de Doutorado em Artes da pesquisadora Luciana Lyra. Ela montou um outro espetáculo teatral intitulado “Guerreiras” conjuntamente com a tese sobre a máscara-mito da guerreira como resultado de sua pesquisa. O espetáculo baseado na vivência das mulheres de Tejucupapo, uma montagem da Companhia Duas de Criação, apresentou-se em temporada em Recife e Tejucupapo, em espaços públicos no ano de 2009. Em 2010, novamente foi apresentado na capital pernambucana, realizado em espaços marcados por batalhas históricas, a exemplo do Sítio Trindade, Forte das Cinco Pontas e Forte do Brum, locais de resistência e hoje centros públicos de memória.

Também de autoria de Luciana, foi lançado o livro infanto-juvenil “De como meninas guerreiras contaram heroínas”. A obra é uma fábula e tem como protagonista um grupo de cinco meninas, que se descobrem guerreiras ao descobrirem seus antepassados históricos no estado de Pernambuco. O objetivo é mostrar para o público adolescente em uma linguagem épica e simbólica as mulheres aguerridas que lutaram contra os holandeses no século XVII, fazendo menção a deusas e heroínas de outros lugares e tempos, indicando que, contemporaneamente, guerreiras e heroínas desvelam-se nas variadas meninas/mulheres do século XX.

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Mais homenagens às mulheres do Nordeste

Ainda sobre a luta pernambucana para a expulsão dos holandeses, outra homenagem pode vir a reconhecer o importante papel feminino nessa história. Recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara Federal aprovou projeto de lei determinando a inscrição do nome da índia Clara Felipa Camarão no Livro dos Heróis da Pátria.

Clara Camarão nasceu na primeira metade do século XVII na margem do rio Potengi, que banha a cidade de Natal (RN), e fazia parte da nação dos índios potiguares. Ela é considerada uma das precursoras do feminismo no Brasil por ter se afastado dos afazeres domésticos para lutar com seu marido, Felipe Camarão, contra as invasões holandesas em Olinda e no Recife.

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Clara esteve à frente de um exército de índias potiguares e lutou, montada em seu cavalo, contra as armas dos inimigos, munida de pleno domínio do arco e da flecha, da lança e do tacape. A última luta de Clara ao lado de Felipe foi a primeira Batalha dos Guararapes, decisiva para a vitória luso-brasileira contra as tropas holandesas, em 1648. Após a morte do marido, a índia recolheu-se a uma vida privada, não sendo conhecidos o local e data de sua morte. A Refinaria Potiguar Clara Camarão, localizada no município de Guamaré (RN), é a primeira do país a homenagear uma mulher.

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