Jornal Mulier – Julho de 2006, Nº 30
Frei Betto afirma que a situação da mulher hoje é contraditória e não condiz com as conquistas sociais que obteve nas últimas décadas
Alberto Libânio Christo, ou Frei Betto, é mineiro, nascido em Belo Horizonte. Participou de momentos decisivos da história brasileira. Começou sua militância política na Juventude Estudantil Católica com apenas 13 anos e foi dirigente da Ação Católica. Confundido com Betinho, foi preso por engano em 1964 durante a ditadura. Tornou-se frei dominicano, estudou Teologia, Filosofia, Antropologia, trabalhou como jornalista e entrou para a “subversão” no final dos anos 60, quando foi para o sul do país ajudar companheiros perseguidos e procurados pelo Regime Militar. Preso novamente em 1969 por suas atividades clandestinas, passou quatro anos na prisão, quando inicia a vida literária. Participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), percorreu o Brasil para organizar movimentos sociais e trabalhou com educação popular. Socialista, ajudou a assessorar a questão religiosa em países socialistas do Leste Europeu e em Cuba. Participou do governo Lula na coordenação do mais importante programa social do governo, o Fome Zero. Deixou o governo em 2004 e agora quer dedicar-se exclusivamente ao que mais gosta, escrever. Tem 53 livros publicados e escreve para dezenas de jornais e revistas do Brasil e do mundo. Frei Betto muito nos alegra ao falar nesta entrevista, com exclusividade, ao Jornal Mulier.
Mulier – O senhor é um observador crítico da realidade da mulher. Como vê a nossa situação hoje no Brasil?
Frei Betto – É uma situação ambígua, contraditória. De um lado, a mulher brasileira emancipa-se, liberta-se do jugo machista, ocupa espaço no mercado de trabalho. De outro, ela permanece sob paradigmas machistas, é discriminada por ser negra/indígena e pobre, é acintosamente exposta na publicidade como mera isca de consumo, submete-se aos padrões ridículos de beleza anoréxica.
Mulier – Como o senhor vê a relação mulher e Igreja? Quais espaços podem estar reservados a nós?
Frei Betto – Em geral, as mulheres ocupam funções secundárias nas Igrejas cristãs. Na católica elas continuam consideradas, sob o ponto de vista da doutrina vaticana, ontologicamente inferiores ao homem, o que as impede de acesso ao sacerdócio. No entanto, há forte reação da Teologia da Libertação e, sobretudo, da releitura feminina e feminista da Bíblia, que contrapõe criticamente os preconceitos da tradição aos fundamentos bíblicos e teológicos que dignificam a mulher. Em algumas Igrejas protestantes elas já têm acesso a todos os ministérios.
Mulier – Qual a posição da Teologia da Libertação, hoje, depois do avanço da Renovação Carismática?
Frei Betto – A Teologia da Libertação continua viva e possui o melhor acervo quanto ao papel da mulher na Igreja e na sociedade. Basta ler obras de Elsa Támez, Leonardo e Clodovil Boff, Maria Clara Bingemer, Tereza Cavalcanti, Pablo Richard etc. E é nas Comunidades Eclesiais de Base, fonte da Teologia da Libertação, que as mulheres exercem mais acentuadamente o protagonismo na Igreja. Inúmeras mulheres que hoje desempenham funções públicas importantes, como a ministra Marina Silva, tiveram sua escola de militância nas Comunidades Eclesiais de Base.
Mulier – Como o senhor vê a América Latina depois da onda neoliberal que varreu a região nas últimas décadas? A vitória de candidatos de esquerda na região é uma esperança?
Frei Betto – A onda neoliberal ainda é muito presente, porém o eleitorado, mais crítico, opta por candidatos que se opõem a ela, como é o caso de Lula, Chávez e Evo Morales. Resta-nos fortalecer os movimentos sociais, como forma de aprimorar a democracia, fazendo-a avançar de representativa a participativa, conforme analiso no livro “A Mosca Azul” (Rocco).
Mulier – Nos anos 80, com a crise do socialismo no Leste Europeu, o senhor temia que a Europa Oriental passasse por um processo de latinoamericanização. Como analisa hoje a situação política, econômica e social da região?
Frei Betto – Com muito pessimismo, pois o processo de latinoaericanização de fato ocorre, com visível degradação das condições sociais, o que aumenta o fluxo migratório rumo à Europa Ocidental, incluindo o contingente de mulheres que se prostitui. Fico me perguntando como foi possível 70 anos de socialismo na Rússia e 40 anos nos demais países do Leste Europeu não terem conseguido criar uma sociedade com novos paradigmas éticos! O que me força à convicção de que o processo emancipatório do ser humano é bem mais longo e profundo do que se imagina.
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