Estupro não é novidade na realidade das mulheres

2 de junho de 2016 Comente »
Estupro não é novidade na realidade das mulheres

A violência do estupro talvez seja a maior violência que uma mulher pode suportar e carrega a diferenciação de gênero. Não é à toa que, durante conflitos, é usada como arma de guerra, ferindo mulheres e baixando o moral do grupo atacado. Compromete o corpo e a alma.

Todos os dias, tomamos conhecimento de casos de violência sexual contra mulheres, as maiores vítimas. Nos programas sensacionalistas de TV e rádio, os casos são noticiados com detalhes mórbidos: as horas de estupro, os objetos muitas vezes utilizados para imobilizar a vítima, assim como os introduzidos nas regiões genitais, as marcas no corpo. No caso da adolescente do Rio de Janeiro, virou manchete nacional e internacional porque envolveu mais de 30 violentadores. Caso contrário, seria mais uma notícia de página policial, mais um número na estatística e talvez mais um caso arquivado.

A Secretaria Pública do Estado do Rio de Janeiro publica anualmente o “Dossiê Mulher”, reunindo as estatísticas dos casos de violência contra a mulher no estado. Em 2014, segundo dados do último dossiê publicado em 2015, 4725 mulheres foram vítimas de violência sexual. Do total de vítimas desse tipo de violência, mais de 80% foram mulheres. O perfil das agredidas choca: mulheres solteiras, pardas e, em sua maioria, crianças de 10 a 13 anos. Outras 586 foram vítimas de tentativa de estupro, são jovens, com 18 e 29 anos, brancas e solteiras.

Importante ressaltar que esses números são os casos registrados pela polícia. Especula-se ser bem maiores, levando em conta a subnotificação pelo constrangimento causado à mulher, o medo de retaliação familiar, a falta de informação sobre como proceder e o medo de ser desacreditada diante de agentes públicos despreparados, formados em uma cultura machista de descrédito e culpabilização da vítima.

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Em todo o Brasil, como informa nota de repúdio da Defensoria Pública da União contra a violência sofrida pela adolescente no Rio de Janeiro publicada no site da instituição em 31/05/2016, dados consolidados no 8º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam a ocorrência de um estupro a cada 11 (onze) minutos no país. E, o mais grave, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apenas 10% dos casos são oficialmente registrados pelas autoridades policiais.

Consequências do patriarcado

A cultura do estupro está relacionada à cultura de menosprezo à mulher, ancorada e reproduzida em discursos biológicos, culturais, filosóficos, religiosos, jurídicos e midiáticos ao longo da história. É o patriarcado. Marlise Matos e Iara Cortês assim definem o patriarcado: “uma forma de organização social na qual as relações são regidas e experimentadas através de dois princípios básicos: (1) o de que todas as mulheres são/estão hierarquicamente subordinadas aos homens (submetidas à autoridade patriarcal) e (2) o de que os/as jovens são/estão hierarquicamente subordinados/as aos homens mais velhos (submetidos/as à autoridade paterna). Foi a partir da consolidação e disseminação política e social desses dois princípios – o da autoridade patriarcal e o da autoridade paterna – que algo construído como “supremacia/domínio masculina/o” foi difundido através dos valores do patriarcado”.

Tal organização social, segundo as autoras, se incumbiu de “atribuir maior valor de estima social às atividades que eram tidas como masculinas em detrimento das atividades que eram pensadas como femininas; legitimando o amplo controle da sexualidade, dos corpos e da autonomia das mulheres; e estabelecendo papéis sexuais, políticos e sociais rígidos, nos quais o masculino passou a ter mais vantagens e prerrogativas”.

Lutar contra o patriarcado e a cultura de violência contra a mulher envolve esforços de toda a sociedade, tanto com relação à violência física, psicológica, como a simbólica. Um exemplo é o combate à objetificação das mulheres nas publicidades. Há pouco tempo, uma propaganda de cerveja mostrava diversos homens pedindo a bebida para uma garçonete de um bar na praia, uma mulher bonita e seminua. Segundo técnicas subliminares, a peça publicitária parecia simular sexo de vários homens com a mulher com a frase “vai Fulana, vem Fulana”. Para quem tiver interesse no tema, recomenda-se a leitura do livro “A Era da Manipulação: como a mídia seduz e manipula sua mente – na publicidade, na imprensa, nos negócios e na política – e como você pode se proteger” de Wilson Bryan Key (Editora Scritta, 1996).

A coisificação da mulher em situações como essa alimenta a cultura de preconceito e misoginia. Daí a importância da discussão de gênero nas escolas, nas instituições, na formação de agentes públicos, uma postura de maior reconhecimento das Igrejas com relação à mulher, assim como nos espaços de poder e decisão. E, claro, o combate à impunidade nos crimes contra a mulher. Legislação elogiada nós temos. A Lei Maria da Penha é reconhecida como uma das mais modernas do mundo no combate à violência contra a mulher, mas é necessária a garantia de seu cumprimento e o envolvimento de toda a sociedade na luta pelo fim da violência às mulheres.

Nesse sentido, como já afirmava Pierre Bourdieu, se a manutenção ou transformação da violência simbólica, da dominação, é possível por meio da reprodução da mesma através de estruturas que a alimenta, é preciso uma transformação das estruturas responsáveis por tal reprodução. Como espaço privilegiado de reprodução de estruturas machistas e, ao mesmo tempo, importante espaço de discussão e reflexão social, os meios de comunicação podem contribuir imensamente para transformar essa realidade.

 

A Lei Maria da Penha descreve a violência sexual como “qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”.

 

Infelizmente, como mostra a pesquisa “Imprensa e Agenda de Direitos das Mulheres – uma análise das tendências da cobertura jornalística”, embora o tema da violência contra a mulher seja recorrente nos meios de comunicação, mostrando o interesse público pelo assunto, o enfoque deixa a desejar.

Segundo a pesquisa, “há excessiva concentração da cobertura em reportagens, especialmente as de caráter policial, que carecem de contextualização e problematização. Um maior investimento por parte da imprensa em entrevistas com especialistas, artigos de opinião e editoriais poderia estabelecer uma relação entre o fato jornalístico em si e as dimensões mais complexas da violência contra as mulheres – no âmbito das relações familiares, da diminuta rede de acolhimento e atenção disponível no país, do descompasso entre o discurso de representantes do poder público e a dotação orçamentária para ações de prevenção e atenção às vítimas. (…) Uma das principais lacunas da cobertura de violência doméstica analisada é justamente a ausência dessa dinâmica entre fato jornalístico e análise (…) Mesmo após a Lei Maria da Penha ter entrado em vigor, no ano de 2006, a imprensa parece ainda estar distante de abordar a violência contra as mulheres como um fenômeno complexo, multidisciplinar, e que, portanto, requer políticas públicas amplas e articuladas nas diferentes esferas, como educação, trabalho, saúde, segurança pública e assistência social”.

Fontes

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

MATOS, Marlise; CORTÊS, Iáris Ramalho. Mais mulheres no poder – contribuição à formação política das mulheres. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2010.

VIVARTA, Veet (coord.). Imprensa e agenda de direitos das mulheres: uma análise das tendências da cobertura jornalística. Brasília: ANDI/Instituto Patrícia Galvão, 2011.

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