Brasileiras de camadas sociais altas e populares lidam com o corpo e a sexualidade de maneiras diferentes

2 de março de 2013 Comente »
Brasileiras de camadas sociais altas e populares lidam com o corpo e a sexualidade de maneiras diferentes

“Eva”, de Albrecht Dürer, pintado em 1507 – Reprodução

Jornal Mulier – Abril de 2011, Nº 87

O Brasil é um país desigual, em que ricos e pobres passam por situações bem distintas em relação a questões sociais e culturais como educação, habitação, saúde, acesso à cultura e bens materiais. No entanto, para as mulheres, uma coisa é certa: a beleza é um imperativo norteador de sua vida e sua existência, e o corpo tornou-se um dos nossos mais importantes cartões de visita, como afirma Joana de Vilhena Novaes. Pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), ela vem estudando o peso que “feiura” e “beleza” têm na vida das brasileiras e recentemente analisou como esta questão é vivenciada por mulheres de camadas sociais altas e populares no Brasil.

A partir do século XX, intervenções no corpo passaram a ser exemplo de avanço da humanidade. As cirurgias plásticas, clonagem, manipulação genética são medidas do “avanço da civilização” em busca do corpo perfeito. Esta evolução serve para dizer às mulheres que fica feia apenas quem quer: “para as mulheres não cultivar a beleza é falta de vaidade – um qualitativo depreciativo da moral” – ou seja, “a feia é menos feminina”. E o feminino ainda está totalmente relacionado a três coisas: juventude, saúde e beleza, que levam à associação com a capacidade de procriação feminina, mesmo após toda a liberação sexual conquistada a partir da pílula anticoncepcional.

A busca do corpo ideal, da juventude e do apagamento dos sinais da velhice mostra como a ditadura da beleza ainda aprisiona e censura as mulheres. Além disso, o culto a um corpo virtual, desenhado com edição gráfica de photoshop ou high-tech e com cirurgia plástica leva a pensar em um corpo sem corpo, uma obra de arte, desenvolvido para tentar superar a morte, a finitude e a condição humana.

Segundo Joana de Vilhena Novaes, “nada mais cruel do que lutar contra um inimigo implacável e inexorável. Contra a ação do tempo, as mulheres lutam, tentando manter-se sempre jovens e belas. Frenéticas e enlouquecidas, consumindo compulsivamente toda sorte de produtos que prometam retardar o seu envelhecimento e manter sua beleza, essas mulheres lutam na verdade contra si, perdendo-se no espelho, à procura de si mesmas”.

O peso da “feiura” e a “feiura” no peso

A “feiúra” ou não seguir o que é considerado “belo” na sociedade contemporânea leva à discriminação e ao preconceito, e isso vale principalmente para as mulheres. A própria origem etimológica da palavra “feiura” já nos dá uma ideia da maneira como ela é vista pelo imaginário social. O termo “feiura” vem do latim foeditas e significa sujeira e vergonha. Para as mulheres, a “feiura” é como um índice de menos-ser.

Ser magra ou gorda tem relação direta com estar esteticamente “imperfeita” ou “fora da forma”. As mulheres acima do peso também são vistas como pouco obstinadas por não conseguirem reduzir a sua massa corporal e chegar aos padrões admitidos por esta sociedade que se reconhece pelo corpo e não por sua vivência e subjetividade. Além disso, interfere até em sua sexualidade, pois a mulher gorda não é vista como desejável pelos homens, apenas as magras poderiam ter esta possibilidade de exercer satisfatoriamente sua sexualidade. Interessante ressaltar que embora a obesidade e a anorexia/bulimia sejam problemas sérios de saúde, as anoréxicas/bulímicas causam mais compaixão do que as obesas, mesmo entre os profissionais de saúde. Talvez isso aconteça por remeter a uma ideia das primeiras como penitentes, sacrificando-se pelo jejum religioso.

A percepção do corpo

Com base nas informações acima, que vivenciamos como um ideal de beleza principalmente na sociedade midiática, Joana de Vilhena Novaes descobriu que mulheres de camadas sociais altas e populares vivem diferentemente estas demandas. A primeira constatação nas camadas mais populares foi a necessidade de mostrarem para a entrevistada que elas não são desleixadas por serem pobres. Para estas parece ser fundamental poder ser vistas como sujeitos de desejo e não apenas de necessidades. Aí já aparece uma grande diferença entre elas. As mulheres com mais condições econômicas entrevistadas em academias de ginástica e clínicas estéticas relacionaram a vaidade a estar bem consigo mesmas, em uma postura mais individualista. Já as mulheres das comunidades e hospitais públicos estavam mais preocupadas em se manter atraentes para os homens em geral.

Outra constatação foi a diferença no entendimento de magreza como sinônimo de beleza. Nas camadas populares, a beleza está associada à fartura de curvas bem delineadas. Ser chamadas de “gostosas” é um objetivo delas, pois as coloca na posição de objeto de desejo. E para as contrárias ao ideal de magreza, a sexualidade não fica de lado.

Questionando as entrevistadas mais abastadas economicamente sobre qual seu programa favorito, a maioria citou sair para jantar, estar com amigos, ir a uma festa, seduzir todo mundo e não ficar com ninguém, além de outras respostas que não fazem referência à sexualidade. Já as mulheres das comunidades, apesar de reconhecerem muitas vezes estarem acima do peso, isso não as impede de fazer uso do corpo de forma mais livre, não deixando de circular por espaços como praias. Em outras palavras, diante de reduzidas possibilidades de diversão e prazer, elas não deixam de vivê-las pela aparência, a sexualidade passa por diferentes caminhos que não necessariamente a celulite. Ressalta-se também a importância dada à comida nas classes menos favorecidas. “Comer em excesso ainda significa a ausência de um estado de privação e miséria absoluta, o que dificulta, imensamente, a mudança de hábitos alimentares”, afirma a pesquisadora.

Interessante observar como as mulheres mais pobres veem as mais ricas. Em uma das falas, uma empacotadora de 32 anos diz: “acho a coisa mais ridícula do mundo quando vejo mulher gorda, de roupa larga, se escondendo atrás daquele bando de pano. Quando vejo na rua já sei – é rica. Até parece que o fato de estar coberta irá tornar ela mais magra, pelo contrário! Aí mesmo é que nenhum homem vai olhar, então é melhor assumir, do que se esconder e fingir que é uma coisa que não é. Pobre já não tem nada mesmo, tem mais é que mostrar o corpo. Quem não tem nada se ajeita com o que tem”. A entrevistada condena o fato das mulheres terem vergonha e não se deixarem ver como objeto de desejo por não seguirem a ditadura estética da magreza. O feio não é a gordura, o feio, o ridículo e o risível é se esconder.

O envelhecimento e as marcas deixadas pela maternidade também são vistas de maneiras diferentes por mulheres ricas e pobres. Enquanto no primeiro grupo há o desejo de apagar estes vestígios, considerados deselegantes e que influenciam em sua vida sexual, por deixarem marcas, no segundo grupo isso é diferente. Mesmo tendo filhos mais jovens e viverem com maiores dificuldades, elas não veem impedimento de uma vida sexual saudável, mesmo com varizes e mudanças nos seios.

Mudanças sociais e econômicas

A atitude em relação ao corpo mudou com o passar dos tempos. A gordura, antes vista como distinção social de prestígio/poder, e a magreza, como sinônimo de pobreza/privação, agora invertem suas significações. Embora mulheres de diferentes camadas sociais vejam e usem seus corpos de maneiras diferentes, o aparato dos meios de comunicação, criando modelos a serem seguidos, e o maior poder aquisitivo da população cada vez mais pesam na busca por um modelo de beleza que exige sacrifícios da mulher. Desde a estabilização da moeda brasileira, com o Plano Real, a procura por cirurgias plásticas tem aumentado 30% a cada ano, e as empresas de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos crescem muito, faturando, em 2008, mais de R$ 21 bilhões. Quase a metade da população feminina gasta 20% de seu salário com produtos e serviços relacionados a esta indústria. Mas as mulheres das camadas sociais menos favorecidas gastam um percentual maior, apesar de seus salários serem proporcionalmente menores.  

Fontes

NOVAES, Joana de Vilhena. “Com que Corpo eu Vou?: sociabilidade e usos do corpo nas mulheres das camadas altas e populares”. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Pallas, 2010.

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