Processo natural ou castigo divino: o ciclo menstrual visto através dos séculos

2 de março de 2013 Comente »
Processo natural ou castigo divino: o ciclo menstrual visto através dos séculos

Imagem: “Vénus acocorada”, arte grega, século V – Reprodução

Jornal Mulier – Setembro de 2005, Nº 20

Para alguns, ela é parte de um processo fisiológico e hormonal importantíssimo para a vida das mulheres. Para outros, não passa de uma sangria inútil, que traz uma série de problemas à saúde feminina. Palavra de origem grega, a menstruação (mens significa ciclos) tem relação com o ciclo lunar, já que ocorre geralmente a cada 28 dias, e regula a vida reprodutiva da mulher. Entretanto, durante séculos, a menstruação foi considerada um mistério.

O homem primitivo percebia que o sangramento cíclico da mulher tinha relação com a fertilidade. Para garantir muitos filhos e assegurar a fertilidade das terras durante as colheitas, estes povos praticavam cerimônias com sacrifícios e oferendas de sangue. As tribos indígenas celebravam a chegada da menstruação como um ritual de passagem da infância para a fase adulta. Para os celtas, a lua era uma deusa; as mulheres, por terem ciclos parecidos com os lunares, estavam diretamente em conexão com essa divindade, afirma Eliezer Berenstein no livro “Inteligência hormonal da mulher”.

No entanto, atributos mágicos negativos também foram dados ao sangue menstrual. Durante a Idade Média, estudiosos da Medicina acreditavam que uma pessoa com lepra nascia assim porque fora concebida durante a menstruação. A Igreja também condenava as relações sexuais durante o período, por acreditar no perigo representado pelo fluxo à saúde do marido, podendo até matá-lo. Segundo o historiador Jean Delumeau, em sua obra “História do Medo no Ocidente”, “a mulher que tinha suas regras era tida como perigosa e impura e corria o risco de trazer toda espécie de males. Era preciso afastá-la”. Dizia-se que uma mulher menstruada podia fazer murchar e secar flores, árvores e ervas, talhar o leite, azedar o vinho e cobrir peças de ferro de ferrugem. O cheiro o fluxo era considerado a sobra dos odores do inferno, capaz de matar uma criança no berço.

No início da Era Moderna, era comum chamar a menstruação de “doença” ou “enfermidade mensal”. Quando ela deixava de vir, acreditava-se que causava um excesso de impureza no organismo, perturbando a mente, causando loucura, melancolia e até mesmo podendo levar ao suicídio. E, acredite, essa ideia ainda era aceita até 300 anos atrás.

Ofender gravemente uma pessoa no século XVI era chamá-la de “bruxa menstruada”. Na verdade, por trás da repulsa, havia o medo do poder desconhecido da menstruação, considerada por sacerdotes como um castigo divino.

As regras são um processo normal do organismo. Durante o ciclo menstrual, o corpo de mulher se prepara para a gestação. Se não acontecer a fecundação, o endométrio – camada que reveste o útero, preparada para receber o embrião – fica sem função e se desprende na forma de sangramento.

Entretanto, alguns médicos, por diversas concepções ou interesses, discordam desse processo “natural”. As ideias do médico ginecologista Elsimar Coutinho há algumas décadas causam polêmica no Brasil. Para ele, até o século passado, a natureza da mulher era engravidar e amamentar boa parte da vida. Ela menstruava apenas no intervalo de uma gravidez a outra.

Ele explica que, no processo de reprodução celular para a formação do endométrio todo mês, pode haver erros na duplicação do DNA, levando à formação de células cancerígenas. Os altos índices de hormônios estrogênio que o organismo necessita para desempenhar tais funções também podem desencadear câncer de mama. O médico é a favor da manutenção de uma taxa média de estrogênio suficiente para garantir a saúde dos ossos e de outros tecidos do organismo. As mulheres tomariam pílulas ininterruptamente e só menstruariam quando quisessem engravidar.

Já o médico ginecologista Eliezer Berenstein é radicalmente contra. Ele lembra que, nas últimas décadas, a menstruação adquiriu um caráter de inutilidade, mas a interferência no ciclo menstrual pode ter consequências desastrosas. A feminilidade tem como base os ciclos mensais, a mulher menstrua porque esse é um componente de seu gênero. Esta ciclicidade feminina é uma inteligência de seu corpo. Para o médico, houve uma revolução hormonal com a Segunda Guerra Mundial, quando a mulher passou a ser integrada no competitivo mercado de trabalho do mundo ocidental. Problemas de saúde passam a ser mais comuns porque descargas de hormônios como a adrenalina começaram a ser constantes na vida feminina, causando estresse, alterações bioquímicas, psicológicas e hormonais.

O fato é que a cada nova geração a mulher menstrua um ano mais cedo que a anterior, caem as taxas de natalidade, e menstruamos cerca de 450 vezes ao longo da vida – um contraste com nossas avós que tinham no máximo umas 150 regras. Excetuando os problemas como cólicas e tensão pré-menstrual – desordens orgânicas que precisam ser diagnosticadas – menstruar pode ser visto como algo natural, mostrando a complexa inteligência hormonal feminina. Mas, para isso, as mulheres precisam parar de ouvir desde pequenas que menstruar é um estorvo, dói e incomoda. Assim podemos passar a conhecer melhor nosso corpo e entender como normais as suas fases.

Fontes

BARSTOW, Anne Llewellyn. “Chacina de Feiticeiras”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.

BERENSTEIN, Eliezer. “A inteligência hormonal da mulher”. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

DELUMEAU, Jean. “História do medo no Ocidente (1300-1800)”. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

SILVA, Maria Lúcia Nogueira, LEITE, Roberto César, RIBEIRO, Lair. “A verdade sobre a reposição hormonal”. São Paulo: Temas de Hoje, 2003.

É permitida a reprodução de conteúdo do site para fins não comerciais, desde que citada a fonte: Jornal Mulier – www.jornalmulier.com.br.

Deixe um comentário