Personagens femininas criadas por Jorge Amado são mulheres fortes e donas de seu destino

4 de março de 2013 Comente »
Personagens femininas criadas por Jorge Amado são mulheres fortes e donas de seu destino

Capa do filme “Gabriela”, de 1983 – Reprodução

Jornal Mulier – Dezembro de 2012, Nº 107

No ano em que se comemora o centenário de nascimento de Jorge Amado, muito se disse sobre suas obras e pouco se explorou a respeito da força das personagens femininas criadas pelo autor. Como afirma a professora de literatura da PUC­Campinas, Ana Helena Cizotto Belline, “antes que o feminismo da década de 1960 desse voz e visibilidade às mulheres na vida social, política e cultural do Brasil, a ficção de Jorge Amado já apresentava personagens femininas que transgrediam e superavam códigos injustos. Trata-se da passagem da mulher objeto manipulado pelo homem a sujeito de seu próprio destino – amoroso ou profissional. É em torno das personagens femininas que gravitam as narrativas de Jorge Amado, e não na esfera masculina”.

Em entrevista ao Jornal Mulier, Eduardo de Assis Duarte, professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador nível 1 do CNPq,  autor do livro “Jorge Amado: romance em tempo de utopia”, ressalta que desde os primeiros romances do autor estão presentes “figuras femininas fortes, donas do seu nariz e que não pensam duas vezes em se assumirem como sujeitos desejantes, donas de seu corpo”. Em seu primeiro livro, “O país do carnaval”, de 1931, escrito quando Jorge Amado tinha apenas 18 anos, a namorada do protagonista fica atraída por um trabalhador da fazenda onde o casal passava uma temporada e leva adiante seu desejo.

Retomando personagens inesquecíveis

Para o jornalista e escritor Ricardo Ramos, em texto escrito em 1975, publicado na imprensa baiana, Jorge Amado e Vinícius de Moraes são os dois grandes cantores da mulher na literatura brasileira contemporânea. Por um longo período, após o sucesso de personagens marcantes a exemplo de Iracema, de José de Alencar; Capitu, de Machado de Assis; e a moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, a ficção criou personagens femininas de pouca expressão. Eram moças ingênuas, senhoras tímidas, velhas faladeiras. Mas Jorge Amado aparece e cria dezenas de tipos femininos, todos “profundamente marcados, seja para o desenvolvimento das histórias, seja para a interpretação de usos e costumes, seja para a transfiguração simbólica dos temas”. Como afirma Ramos, “em todos os seus romances, as mulheres são personagens centrais, decisivas, analisadas com um interesse e uma penetração que nem sempre o escritor dedica às suas personagens masculinas. Os homens, nos livros de Jorge Amado, são muito mais previsíveis do que as mulheres”.

E quem são essas mulheres? Uma mulher forte que lutava, define Ramos, as fazendeiras, as filhas de coronéis, as mulheres do povo, as prostitutas. Ana Badaró reafirma seu direito a casar diante do tio e do pai, patriarca do sertão e chefe de jagunços. Lívia perde seu grande amor e vai reencontrá-lo no mar, transformando-se em deusa. Rosa Palmeirão bate nos homens e faz correr a polícia. Jacundina vê toda a família morrer pela fome. Dona Flor tem amor suficiente para seus dois maridos. Tereza Batista passa de cabaré a prostíbulos enfrentando todos os poderes do mundo. Gabriela mostra sua ânsia de independência e domínio sobre seu corpo e seu amor.

A polêmica Gabriela

Para o professor Eduardo de Assis Duarte, “Gabriela Cravo e Canela”, escrito em 1958 e cujo enredo data de 1925, pode proporcionar, através de cinco personagens, uma análise interessante sobre as transformações sociais ocorridas nas últimas décadas nas relações de gênero. “Ofenísia remete à mulher do século XIX, submissa e enclausurada, que morre de amor não correspondido logo no início, apaixonada pelo Imperador Pedro II; Sinhazinha remete à mulher dos começos do século, apaixonada pelo dentista, que ousa trair o marido e é assassinada em nome da honra da família patriarcal; já Glória se apaixona pelo professor, trai o coronel, é flagrada e não morre, sendo apenas expulsa da casa onde era mantida como amante; e Gabriela, embora casada, também trai, mas não paga com a vida, termina vitoriosa com a simples (e civilizada) anulação do casamento; e, por fim, a jovem Malvina, que quebra totalmente com a condição imposta à mulher de seu tempo, desobedece ao pai, rompe o namoro proibido com o engenheiro ao saber que este era casado, abandona tudo e vai construir uma vida independente longe dali, numa cidade grande. Como se vê, Jorge Amado retrata na ficção as transformações ocorridas na sociedade rumo à nova mulher e ao novo homem que vemos agora no século XXI, embora muitos estejam ainda saudosos dos velhos tempos”.

Duarte faz ressalvas à crítica feminista. Esta não vê com bons olhos a representação feminina na obra de Jorge Amado, caracterizando-a como reprodutora de estereótipos da mulata assanhada, a mulher sexy, disponível ou mesmo estéril, possibilitando o sexo sem compromisso bem ao gosto das fantasias masculinas, segundo o professor. No entanto, assegura Duarte, “esse estereótipo está em praticamente toda a literatura brasileira, vem do século XIX e chega até Guimarães Rosa (este, aliás, nunca acusado de machista). E mesmo admitindo a presença desse tipo feminino em personagens como Gabriela, Tieta do Agreste e Tereza Batista, entre outras, é preciso constatar que elas não são apenas objetos sexuais oferecidos ao desfrute masculino. Elas são também sujeitos e buscam sua realização como seres humanos, tanto no plano amoroso quanto no profissional. Ao final do romance, Dona Flor escolhe não escolher e fica com os dois maridos. E, mesmo casada com Nacib (contra sua vontade, não podemos esquecer), Gabriela realiza seu desejo por Tonico, assim como as demais. São figuras que dialogam com a nova mulher que está surgindo aos poucos no século XX, fenômeno que gera também um novo homem”.

Para Eduardo de Assis Duarte “Amado estava sempre com as ‘antenas ligadas’, tinha um faro todo especial para as mudanças em curso ao longo do século XX. E conseguiu inserir muito disso em sua vasta obra, que vai de 1931 até quase a década de 1990. Com isso, consegue narrar um pouco de todo esse processo. Sua obra dialoga com as grandes utopias de seu tempo: o socialismo, que embala os heróis da primeira fase de sua obra até meados dos anos 1950; o feminismo – sim, o feminismo – que, de uma forma ou de outra, remete a heroínas como as já citadas; e o multiculturalismo, que engendra a defesa dos direitos dos afrodescendentes, o combate ao racismo e a construção de um herói negro como Pedro Archanjo, de ‘Tenda dos Milagres’ (1969), romance escrito no calor da hora da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos e também das lutas de libertação dos países africanos de língua portuguesa”.

Segundo o próprio Jorge Amado, se havia alguma beleza em sua obra, ela provinha do retrato dos despossuídos, das mulheres marcadas com ferro em brasa, dos que estão no último escalão do abandono. O autor dizia estar, na literatura e na vida, cada vez mais distantes dos heróis e dos líderes, no entanto, mais próximo daqueles desprezados, repelidos e condenados pelos regimes e pela sociedade. Como afirma Ana Helena Cizotto Belline, ao focalizar tais seres normalmente à margem da vida social, Jorge Amado “confere força para subverter a ordem estabelecida e inaugurar um novo tempo de celebração da vida e da liberdade”.

Fontes

BELLINE, Ana Helena Cizotto. Representações do feminino. In GOLDSTEIN, Norma Seltzer. “Caderno de Leitura: A Literatura de Jorge Amado”. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Disponível em: http://www.jorgeamado.com.br/professores/professores01.pdf

Agradecimento especial à Fundação Casa de Jorge Amado, principalmente à arquivista Marina Amorim, da Divisão de pesquisa e documentação, cuja ajuda na indicação de fontes, referências bibliográficas e envio de encartes de jornais foi fundamental para a confecção da reportagem.

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