Merced Guimarães – Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos

5 de março de 2015 Comente »
Merced Guimarães – Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos

Jornal Mulier – Abril de 2013, Nº 111

“Aqui é o Holocausto”, afirma Merced, sobre sua casa, onde foi descoberto o Cemitério dos Pretos Novos, onde eram enterrados os escravos recém chegados ao Brasil

Mulier – Merced, por favor, conte-nos um pouco sobre você, suas origens e formação.

Merced – Sou filha de imigrantes europeus (mãe espanhola e pai português). Nasci em 25 de setembro em 1956, no Instituto Fernando Figueira, antiga Escola de Enfermagem Anna Nery no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Com minha mãe separada, fomos viver na casa de uma senhora no bairro do Leme, onde minha mãe era como empregada doméstica e costureira. Moramos lá até 1965 ou 1966, quando minha mãe saiu para tentar algo melhor. Confesso que gostava do lugar, era um quartinho muito pequeno, mas eu gostava dali.

Eu e minha mãe moramos em vários lugares do Rio de Janeiro. De Botafogo à Zona Portuária, sempre em cortiços (eu chamo isso de favela do asfalto). Eram casas antigas com muitos quartos, geralmente contando com um banheiro coletivo e um a dois tanques para lavar roupas e louças. Sair do Leme para morar assim confesso que foi um choque. Morei em lugares horrorosos, muito pobres, de malandragem e prostituição, como a Lapa e a Praça Tiradentes. Esses dois lugares eram muito ruins, pois passavam por ali pessoas feias e esquisitas, isso no olhar de uma menina de 10 anos.

Durante o dia, eu ficava esperando na área de serviço das freguesas de minha mãe, geralmente senhoras socialites, e, às vezes, dava para espiar seus apartamentos lindos e suntuosos. Ao cair da noite, voltava para um cortiço, em lugares tenebrosos, onde saiam brigas, palavrões, entre outras coisas que não cabem citar. Em 1966, minha mãe, com pouco dinheiro, teve que morar em lugar pior ainda, na Rua Gal Pedra. Na citada rua, ocorreu um desastre que nunca esqueci. Foi no ano de 1966. Houve 72 horas de fortes chuvas. Num estalar horrível, a parte dos fundos no cortiço desabou. Minha mãe pegou documentos e roupas, saímos para a rua e fomos levadas para um colégio em Laranjeiras. Havia a promessa de darem casa, mas o lugar era muito longe, a atual Cidade de Deus. Lá era até um tempo atrás muito perigoso, com conflitos entre policiais e traficantes. Voltamos para pegar nossas coisas e não lembro onde fomos morar nessa época.

Também não posso deixar de lembrar outro fato triste e de certo modo pitoresco de minha vida, aliás tudo de pobre é inusitado. Minha mãe tinha arrumado um quarto na Lapa, local com diversos sobrados. Um deles era um bar e, na parte de cima, vários quartos, até que o quartinho era bonzinho, não tinha mofo: eu sou alérgica. Um dia, no sobrado ao lado, houve um grito: “fogo, fogo”. Então eu e minha mãe pegamos as tralhas e saímos correndo escada abaixo, ficamos na rua vendo os bombeiros apagarem o incêndio de um bordel, quase atingindo o sobrado onde morávamos. O sobrado, após o incêndio, ficou interditado aos moradores.

Sem dinheiro, fomos “morar” nas barcas Rio – Niterói. Pagávamos a passagem, entrávamos na barca e dormíamos, nas idas e voltas da madrugada, até o dia raiar. Então íamos ao banheiro escovar os dentes e lavar  o rosto. Depois minha mãe ia costurar para as madames, que às vezes me davam doces.

Pelo que deu para perceber, essas mudanças de endereços também aconteciam nas escolas onde tentei estudar. Aos 13 anos, resolvi trabalhar. Terminei o atual médio depois de casada e com toda essa base passei no vestibular em 2008 para cursar História. No entanto, devido a uma cirurgia de mama, tive que trancar a matrícula. Fomos morar na Zona Portuária quando eu tinha 15 anos, voltando a morar na periferia da Zona Portuária, mas desta vez em uma casa melhor.

Em 1975 conheci meu marido, Petrucio, também filho de uma costureira e padrasto zelador de prédio. Minha mãe voltou para Espanha, eu não quis ir e fiquei sozinha morando num cortiço e trabalhando como balconista em uma loja que tratava de animais e vendia produtos de agronomia, de adubos a químicos para combater todo tipo de praga. Com esse conhecimento fundamos uma empresa de dedetização. Em 1978, casei com Petrucio, tivemos quatro filhas. Tínhamos o sonho de ter uma casa, tínhamos esse direito, afinal passamos por muitas coisas e lutamos muito, trabalhamos intensamente com muito inseticida na cara para ao menos ter uma casa própria, e isso veio acontecer em 1990. Conseguimos enfim a sonhada casa, velha, mas nossa. Não imaginávamos o que estava para acontecer na nossa vida.

Mulier – O local onde reside é atualmente também um sítio arqueológico. Quando e como isso aconteceu?

Merced – Como explanei, a casa era muito velha e precisava de obras. Seis anos após a compra, veio a sonhada reforma. Em janeiro de 1996, o pedreiro me avisou no refeitório de nossa empresa que nas escavações dos buracos estavam saindo, aos montes, ossadas de animais. Chegando em casa, fui logo perguntando: onde estão os ossos de cachorros? Ele apontou para o entulho. Peguei em um, era uma arcada inferior, humana. Comecei a buscar nos entulhos e encontrei ossos, ossos e muitos ossos até deparar-me com uma pequena arcada dentária inferior de uma criança. Seu José, o pedreiro, fez o sinal da cruz e foi embora, nem as ferramentas guardou, seus ajudantes pegaram suas roupas e saíram correndo. Petrucio e eu estávamos quase convencidos de que ali acontecera alguma chacina, alguém assassinou uma família inteira, inclusive criança. Fiquei bem atordoada. Liguei para uma amiga advogada, e ela me forneceu um telefone de um amigo delegado. Este aconselhou comunicar à delegacia local para investigação.

Tentando preparar algo para o jantar e com a cabeça a mil, lembrei-me de um amigo morador do bairro, ex-diretor da Associação de Moradores, Carlos Machado, pessoa que lutou para a preservação dos casarios dos bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo. O Machado contava nas rodas de conversas, nos eventos culturais do bairro, sobre as histórias daqui, onde aconteceram muitas coisas. Algumas pareciam lendas, pois nada disso eu li ou estudei na escola. Liguei para ele, que foi à nossa casa. Ao chegar, ele se deparou com um quadro funesto, várias caixas cheias de ossos. Ele de certa forma ficou aterrorizado e disse que na rua havia existido um cemitério, o cemitério de escravos. Ficamos sem fala.

Após a saída do Machado, ficamos até tarde da noite conversando sobre o que fazer com o caso, se avisava ou não as autoridades. Petrucio lembrou ter lido no jornal por diversas vezes que achados históricos geralmente levam a suspensão de obras por um bom tempo, portanto não era uma boa ideia comunicar esse achado. Mas eu retruquei: isso deve ser muito importante, pois sou uma pessoa curiosa. Apesar de não ter conhecimento sobre isso, Machado nos contou sobre a história do bairro, local de mercado de venda de pessoas. Sim, aqui era um lugar onde se vendia gente, e isso era importante de ser avisado, esse achado seria como um livro perdido.

Fiz contato com o Centro Cultural José Bonifácio, localizado na mesma rua de casa, centro de referência e documentação da cultura afro-brasileira. Logo recebi pessoas do Departamento Geral de Patrimônio Cultural. Os arqueólogos, ao verificarem as ossadas, afirmaram: aqui é parte do antigo cemitério de escravos, o Cemitério dos Pretos Novos. Perguntei à arqueóloga por que Pretos Novos? E a resposta: eram os cativos recém chegados de África.

Na época, 1996, essa história era desconhecida pelos cidadãos, pois os livros didáticos não mencionavam o fato, como até hoje poucas pessoas sabem. Nós todos passamos por momentos terríveis. Tivemos que sair de casa, a obra foi embargada, e a pesquisa que a prefeitura queria fazer não aconteceu. Éramos ameaçados de desapropriação toda vez que íamos reclamar sobre uma posição a respeito das pesquisas. Após tanto sacrifício em nossa vida, agora ainda ter a punição de perder a nossa casa! Em 1998, abandonamos a casa devido a risco de desabamento. Os buracos ficaram abertos e, devido a chuvas e infiltrações, surgiram rachaduras horizontais com mais de 3 cm. Fomos nos abrigar em uma sala de treinamento de nossa pequena empresa, e ali ficamos até 2001.

Nesse ano de 2001, fomos chamados pela prefeitura, queriam nos desapropriar. Lembramos que, por lei, se o proprietário deixar realizar pesquisas no local, não precisa desapropriar. Fizeram um evento na casa em 20 de novembro de 2001: “Aqui começa uma nova História”. Mas, em março de 2002, entrei em contato para saber quando iriam iniciar a pesquisa, e a resposta foi que houve mudanças e não se sabia quando isso ia acontecer. Deixei de lado e fiquei um tanto triste, pois de alguma forma essa história não seria conhecida e novamente ia ficar embaixo das casas na Gamboa.

Em 2003, um grupo de estudantes soube do achado através de um professor e foi até a nossa casa para conhecer de perto a história. Nesse dia, eles decidiram formar um grupo para criar um site. Assim foi feito o www.pretosnovos.com.br.

Mulier – Qual o número estimado de negros enterrados onde é hoje o Cemitério dos Pretos Novos?

Merced – Estima-se aproximadamente 35 mil pessoas, possivelmente oriundos de Angola e Congo entre outros lugares da África.

Mulier – Como estava a situação dos corpos e objetos encontrados?

Merced – Eles eram queimados para a descarnação, seus ossos partidos e jogados em valas comuns.

Mulier – Hoje vocês mantêm no local o Instituto Pesquisa e Memorial Pretos Novos. Quando foi criado, o que o público pode encontrar no local e quais as atividades desenvolvidas?

Merced – O instituto foi fundado em 2005. Fomos procurados por um artista plástico interessado em expor sua arte na casa por considerar um lugar especial. Aceitamos, marcando a vernissage para dia 13 de maio. Nesse dia, convidamos várias pessoas. Na ocasião quase fomos obrigados a fundar a instituição, pois já tinham se passado nove anos, e nada aconteceu. A tendência era o esquecimento. Aceitamos, e várias pessoas ali presentes se tornaram fundadoras.

Em 2009, o Instituto dos Pretos Novos venceu o edital de Ponto de Cultura, um convênio entre o Ministério da Cultura e a Secretaria Estadual de Cultura, com o projeto de Oficinas de Histórias. No ano de 2010, participaram mais de 600 pessoas nas oficinas, passando de mil em 2012. Observo que a grande maioria das turmas era de professores, foi um belo projeto, pena que o Ministério da Cultura não deu continuidade.

Mulier – Você e seu marido cuidam do local. Vocês têm ajuda de alguma instituição privada e/ou pública para manter o espaço?

Merced – Este ano conseguimos com a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp) um convênio para o custeio de água, energia elétrica e limpeza, entre material de limpeza e higiene. Sem essa ajuda, íamos fechar, porque o pagamento dessas contas no início era feito por nós, e os professores do projeto doavam parte do pagamento das oficinas.

Mulier – Como os movimentos negros estão se comportando em relação à descoberta, preservação e apoio (ou não) ao cemitério?

MercedGostaria de não fazer comentários, somos brancos e tentamos manter a memória de pretos.

Mulier – Qual o sentimento de vocês em poder preservar parte dessa história, de proporcionar o não esquecimento de toda a violência praticada contra população negra escrava vinda para o Brasil?

Merced – O sentimento é que aqui é o Holocausto!

O Cemitério dos Pretos Novos, Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, fica na rua Pedro Ernesto, 32/34, Bairro da Gamboa, na cidade do Rio de Janeiro – RJ. Telefone: (21) 2516-7089. www.pretosnovos.com.br – pretosnovos@pretosnovos.com.br.

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