Joel Rufino dos Santos – historiador, professor e escritor

3 de março de 2013 Comente »
Joel Rufino dos Santos – historiador, professor e escritor

Jornal Mulier – Abril de 2010, Nº 75

Para Joel Rufino o Estado, a Escola e os meios de comunicação têm feito alguma coisa contra a discriminação racial no país

Joel Rufino dos Santos é historiador, professor e escritor. Publicou mais de 50 livros e recebeu inúmeros prêmios por sua obra literária, inclusive o Jabuti, o mais importante prêmio literário brasileiro. É uma referência em relação à história e cultura negra no Brasil. 

Mulier – Poderia contar um pouco sobre sua origem e formação?

Joel – Nasci em Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro, numa família de migrantes pernambucanos. Estudei História, fiz doutorado em Comunicação e Cultura e aposentei como professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Mulier – Quando você escreveu seu primeiro livro e qual motivo o fez enveredar para a História e a Literatura?

Joel – Meu primeiro livro foi uma obra conjunta (cinco autores, sete volumes), “História Nova do Brasil”, de 1963. No clima da época, dediquei-me à História; mais tarde, à Literatura, minha “vocação” maior. Com o tempo, compreendi que a Literatura, sobretudo a de ficção, é uma forma superior de conhecimento, seu objeto são as afeições e os desejos humanos. É a mais universal das criações humanas. O que me encanta na Literatura é o mesmo que me encantava, quando menino, nas histórias da Bíblia (embora eu já fosse ateu), em Júlio Verne, em Jack London: a possibilidade de reinventar a existência.

Mulier – Você tem vários livros dirigidos a crianças e jovens. Como é escrever para este público em um mundo cada vez mais marcado pelas novas tecnologias e o virtual?

Joel - As novas tecnologias de comunicação até agora não mataram o livro, ao contrário, ampliaram suas possibilidades de invenção e expressão. Nós, do planeta livro, tememos uma invasão de alienígenas, mas esse medo se deve a uma supervalorização do meio livro. A Literatura continua.

Mulier – Seu novo livro é sobre uma mulher, Carolina Maria de Jesus. Tem outras obras escritas sobre mulheres, como é escrever sobre elas?

Joel – Tenho uma novela sobre Maria Quitéria, “O soldado que não era”, em que conto a luta dessa moça baiana da roça contra o colonialismo português, entre 1821 e 1923. Quitéria atendeu ao apelo de um emissário que recrutava combatentes anti-portugueses no Recôncavo, travestiu-se de homem, alistou em Cachoeira e combateu no cerco de Salvador, matando e sendo ferida. O pai nunca a perdoou. Deixou uma filha.

Mulier – Pode contar um pouco sobre a vida e obra de Carolina Maria de Jesus, para quem ainda não a conhece?

Joel – Carolina se tornou escritora em meio a circunstâncias desfavoráveis. Migrou de Sacramento (Triângulo Mineiro) para São Paulo no final dos anos 1950. Catava papel e morava com três filhos num barraco à margem do rio Tietê. Lia o que achava e escrevia à luz de vela em cadernos recolhidos no lixo. No dia em que não catasse papel, não comia. Um jornalista descobriu seus escritos, Carolina ficou célebre com “Quarto de despejo”, de 1960. Ganhou bastante dinheiro, a obra foi publicada em 14 países. No final, sobrou um sítio modesto na periferia de São Paulo. Sua fama durou menos de cinco anos. Escreveu diários, romances, contos, esquetes, aforismos, peças de teatro. A Biblioteca Nacional guarda mais de cinco mil textos e fragmentos dessa “escritora improvável”.

Mulier – Como classe social, gênero e raça se entrelaçam na vida e obra de Carolina?

Joel - Carolina é o exemplo da escritora-testemunho. Sua escrita revela o que é ser pobre, negra e mulher no Brasil de cinquenta anos atrás. Naquele tempo, a ideologia da democracia racial estava no apogeu. Hoje, se desmoralizou, e ela contribuiu bastante para essa desmoralização. Tanto é assim que seus diários, “Quarto de despejo” e “Casa de alvenaria” incomodaram a direita e a esquerda.

Ela foi o que chamaríamos hoje de politicamente incorreta. Carolina incomodava a direita ao revelar a pobreza e o abandono dos pobres; incomodava a esquerda por ser uma “pobre sozinha”, indiferente às reivindicações dos trabalhadores. Sua luta contra a pobreza era individualista, embora mais tarde se aproximasse do movimento negro.

Mulier – E como um estudioso de questões raciais, como analisa a situação das mulheres negras no Brasil? 

Joel – A situação da mulher negra provavelmente continua a pior dentre todas. Esse diagnóstico parece consensual. O dissenso aparece quando passamos às estratégias de luta das mulheres negras. Para mim, a melhor estratégia é a que combina a sua luta específica com a luta geral do povo brasileiro.

Mulier – Como instituições como a Escola, o Estado e os Meios de Comunicação podem trabalhar no combate à discriminação racial no país?

Joel - O Estado, a Escola e os Meios de Comunicação têm feito alguma coisa contra a discriminação racial no país. Se prosseguirem, já é bom. Só é preciso lembrar que em todo combate há risco de derrotas e retrocessos. Nas telenovelas, por exemplo, há alguns anos negros e negras se tornaram protagonistas, resultado da luta organizada dos próprios artistas negros. A África está discretamente presente, hoje, em currículos e material didático. O Estado tem políticas públicas contra o racismo. Em suma: se tomarmos um período histórico longo (os últimos cem anos), veremos que a luta contra o racismo e seu filho predileto, a discriminação racial, foi vitoriosa.

Mulier – Como ex-preso político perseguido durante o Regime Militar, o que pensa sobre o debate em voga no Brasil sobre a instalação de uma Comissão de Direito à Verdade e à Memória para apurar crimes cometidos durante a ditadura?

Joel - Acho bom para a sociedade brasileira a instalação dessa comissão. O nosso lado pagou caro a derrota: prisão, desaparecimento, tortura, exílio, reputação. Os que ficaram do lado da ditadura não pagaram nada, nem os torturadores nem os grandes jornais, a televisão, seus representantes políticos (como um certo ex-presidente), seus intelectuais e formadores de opinião (como um recém falecido criador do “Jornal Nacional”).

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