Guerra fez as mulheres adaptarem o vestuário à escassez, estimulando a imaginação e a crítica de costumes

2 de março de 2013 Comente »
Guerra fez as mulheres adaptarem o vestuário à escassez, estimulando a imaginação e a crítica de costumes

Foto:  Seeberger. Reprodução do livro “Moda e Guerra: um retrato da França ocupada”, de Dominique Veillon

Jornal Mulier – Setembro de 2011, Nº 92

O modo de se vestir sempre disse muito sobre uma época, um país e uma sociedade. Segundo a historiadora francesa Dominique Veillon, no livro “Moda e Guerra: um retrato da França ocupada”, a moda pode ser muito mais que frivolidade e renovação do vestuário, também é um estilo de uma época, sinônimo de coragem e resposta a uma dignidade ferida. Como francesa, sua afirmação faz referência aos acontecimentos da II Guerra Mundial, quando a França foi ocupada pelos alemães entre 1940 e 1944. A capital mundial da moda, propagadora de modismos e costumes, passou por anos difíceis, e esta dura realidade trouxe novas influências, tanto na moda como na vida cotidiana das mulheres.

Num primeiro momento, o conflito levou ao racionamento de eletricidade e de combustíveis, necessários para alimentar a máquina de guerra alemã. A população se adaptou aos poucos. As mulheres passaram a escolher penteados mais simples e sem cachos, que também não resistiriam a possíveis fugas ou ao meio de transporte muito utilizado na época, a bicicleta. Devido à escassez de gasolina, a bicicleta ganhou lugar de honra e tornou-se o meio de locomoção mais difundido na França.

Mas a bicicleta trouxe um outro problema para as mulheres: como se vestir mais adequadamente para andar em duas rodas? Pernas de fora e cabelos ao vento, vestidos estampados, geralmente usados nas férias de praia ou campo, foram as alternativas, apesar do chapéu continuar a ser um acessório indispensável para as ciclistas. À noite, o metrô foi a solução mais adequada para aquelas que ainda ousavam sair para jantares ou ir ao teatro. Devido ao toque de recolher, o último trem era às 23h, e para não perdê-lo, sendo às vezes necessário uma corrida, o vestuário também precisou se adequar, nada de vestidos longos tocando o chão e que impossibilitassem um deslocamento rápido. 

Reaproveitando materiais

No inverno, diante do frio intenso e do aquecimento insuficiente, as roupas deveriam ser além de elegantes e bonitas principalmente quentes. A moda foi caracterizada pelos excessos e contrastes, com sobreposição de peças e uso de materiais isolantes como jornais por debaixo das roupas para aquecer. Engordar a silhueta não foi uma preocupação em tais circunstâncias.

Com a França dependente da importação de materiais como lã, seda e couro, e os alemães consumindo grande parte da produção e as matérias primas mais raras e caras, o jeito foi se adaptar à escassez, recorrendo ao próprio guarda roupa. Outra possibilidade era comprar do mercado paralelo, pois também foi estabelecido um bônus para a aquisição de roupas e alimentos em 1941, limitando o número de itens a serem adquiridos pela população. A solução foi improvisar com o que se tinha, usando retalhos para confeccionar roupas e transformando trajes desgastados. O chamado vestido mil-retalhos foi amplamente adotado em 1942.

Os sapatos fabricados com couro começaram a ser uma raridade, e outros materiais passaram a ser usados, como borracha, pneus velhos e palha trançada. Havia economia até mesmo no couro da sola dos calçados, levando as mulheres a improvisarem os solados com cortiças, aço e madeira para manterem a vida útil dos mesmos. Um regulamento de 1941 dava direito a uma troca de sola por ano e um novo par de calçados no máximo a cada quatro anos. Logo a sola de madeira virou habitual, apesar do barulho, peso e desconforto.

Acessórios como cintos e bolsas foram outros itens a terem rigorosas regras para confecção devido à falta de couro. Os primeiros não poderiam passar de quatro centímetros de largura para as mulheres e dois e meio para os homens. Já as bolsas grandes de couro tiveram sua fabricação proibida por decreto em 1941. Cintos finos, bolsas de pano e de madeira viraram moda. No entanto, talvez o acessório de que mais se sentiu falta foi a meia de seda. Até então, uma mulher digna do nome não poderia sair sem meia. Com a falta de material e o frio intenso, adotou-se a meia grossa de lã.

Em termos de acessórios, restou aos chapéus um papel de destaque. Houve uma explosão de formas e cores de materiais variados: tule, renda, plumas, flores artificiais, seda, palha e até frutas frescas, muitas realizações extravagantes e bizarras. Talvez uma reação às misérias do momento, uma fuga da realidade sofrida, o humor servindo como antídoto à tristeza. Muitos viram no exagero dos chapéus uma forma de zombar dos ocupantes. Pouco a pouco as coleções dos estilistas começaram a colocar fim a esta moda de exageros, fazendo sucesso a touca apertada na nuca e o turbante, este conhecido mundialmente através de Simone de Beauvoir. Funcionam como chapéu e penteado, num tempo sem eletricidade e com a irregularidade do trabalho de chapeleiros e cabeleireiros.

Atacando a alta costura

A indústria do vestuário sempre foi um verdadeiro patrimônio cultural da França. Com a guerra esta indústria ficou abalada, prejudicando toda a economia do país. Além disso, grande parte da produção na França agora era dirigida aos alemães, causando a escassez descrita acima. Cogitou-se até mesmo a transferência de força de trabalho do vestuário, as famosas maisons, para Viena ou Berlin, cujo objetivo era fazer desta última o centro cultural e artístico europeu. Diante da reação francesa, os alemães deixaram as coisas como eram, pois acreditavam que a criatividade parisiense não resistiria à falta de material selecionado para suas criações e às poucas encomendas externas. Contaram com cooperação mínima ou total de algumas empresas da chamada alta costura, mas não contaram com a criatividade das francesas e estilistas de improvisar nos tempos difíceis e resistir. Quanto mais a população se mostrasse elegante, mais mostraria que não temia o futuro.

Discrição e conforto foram as palavras de ordem dos ateliês famosos nos tempos de ocupação. As mulheres não tinham mais tempo de trocar várias vezes de roupa por dia. O tailleur se impôs como traje ideal do dia à noite, assim como o vestido simples, acompanhado de um casaco comprido de tecido de qualidade, além de figurinos utilitários cheios de bolsos onde coubessem todas as necessidades em caso de fuga, até mesmo as máscaras de gás. Apesar da preocupação de manter a elegância, nasceu um novo estilo, modificando-se a imagem da mulher submissa aos caprichos da moda.

Onda moralista – uma nova mulher

Durante os anos de ocupação nazista, 1940-1944, o Estado francês estimulou um novo ideal de beleza feminina: as mulheres deveriam ser sensatas, sérias e dispostas a sacrifícios. Uma busca de moral foi apregoada, pois os anos difíceis e a derrota seriam resultados da desordem dos anos anteriores. Recriminou-se a mulher que privilegiava a vaidade em detrimento do papel de mãe, considerado o natural para ela. Até o uso da calça comprida entrou na polêmica. Denunciou-se que a calça seria uma forma de emancipação feminina, uma inclinação para a igualdade entre os sexos, fazendo com que a mulher se masculinizasse e esquecesse seu papel “natural”. Chamada a ser mais mãe que sedutora, as extravagâncias, as joias, as maquiagens pesadas e a preocupação com a moda não seriam necessárias. A mulher guardiã do lar deveria dedicar-se antes de tudo aos filhos. Esta era a propaganda oficial do governo, reproduzida posteriormente pela própria imprensa feminina.

Para as jovens, a vaidade foi permitida, mas sem exageros, o importante seria manter o charme feminino apenas para atrair a simpatia e os olhares masculinos. Deveriam desprezar as influências externas, principalmente do cinema norte-americano. O esporte foi estimulado para modelar o corpo, tornando-as mulheres fortes, encantos de um lar feliz.

Terminada a guerra, a moda não mais se mostrava uma propriedade exclusiva das classes mais abastadas. Com a Libertação, inconscientemente, segundo Dominique Veillon, as mulheres aspiraram uma renovação de estilo que veio para ficar. Mulheres, mães ou jovens, fortalecidas pelas dificuldades da guerra, muitas sozinhas em seus lares, transformadas em chefes de família e firmando-se de vez no mercado de trabalho, passaram a não mais aceitar tão facilmente a imposição de atitudes. Posteriormente, também na França, na década de 1960, os movimentos de contestação, estudantis e feministas, além da pílula anticoncepcional, transformaram radicalmente as estruturas sociais, desejos e emancipação femininos, levando a uma verdadeira revolução, a maior do século XX, a revolução das mulheres.

Fontes 

VEILLON, Dominique. “Moda e Guerra: um retrato da França ocupada”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

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