Cotidiano de exploração trabalhista, disciplinarização e crimes sexuais levaram mulheres à luta por direitos na Manchester Mineira

2 de março de 2013 Comente »
Cotidiano de exploração trabalhista, disciplinarização e crimes sexuais levaram mulheres à luta por direitos na Manchester Mineira

Operárias durante a saída de uma fábrica de tecidos em 1950. Foto de Peter Scheier – Reprodução

Jornal Mulier – Outubro de 2011, Nº 93 

No início do século XX, a cidade de Juiz de Fora emergiu como o principal centro industrial do estado de Minas Gerais, recebendo a denominação de Manchester Mineira, em referência à cidade industrial inglesa de mesmo nome. Grande parte do proletariado era constituída por mulheres. Em busca de informações sobre o trabalho feminino nesse período, a pesquisadora Carolina Barbosa Neder fez do tema seu objeto de estudo com a dissertação “Memórias que não se apagam: o cotidiano de lutas das operárias na Manchester Mineira (1890-1954)”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2010, orientada pela professora Valéria Marques Lobo.

A pesquisa analisou a inserção da mão de obra feminina no mercado de trabalho entre os anos de 1890 a 1954, sobretudo aos jogos de poder que culminaram na máxima espoliação da força de trabalho e em crimes sexuais cometidos no interior de algumas fábricas. Foram usados como fonte processos trabalhistas, documentos sindicais, jornais, processos criminais, os códigos penais de 1890 e de 1940, além de entrevistas concedidas por ex-operárias das fábricas da cidade, senhoras hoje com idades entre 70 e 90 anos.

Incorporadas às fábricas

O emprego de mulheres em fábricas, principalmente têxteis, era uma alternativa de mão de obra mais barata, se comparada ao valor pago aos homens. Operárias eram consideradas mais passivas e submissas, menos propensas a fazer greves, facilitando a exploração de sua força de trabalho. Havia também todo um processo de disciplinarização do corpo operário, iniciado nas primeiras fábricas mineiras e estendido às fábricas de Juiz de Fora até meados do século XX. As fábricas eram estabelecidas em grandes salões, o serviço era dividido de acordo com o tipo de atividade, estando as trabalhadoras sob constante vigilância de contramestres. Tudo para estabelecer uma sujeição do corpo ao tempo, para proporcionar o máximo de rapidez e eficácia na produção. As condições de trabalho eram precárias, com muitas horas trabalhadas ao dia, baixos salários e péssimas condições de higiene dentro dos estabelecimentos, sujos, escuros e pouco ventilados. Apesar de importantes conquistas a partir de 1930, como o direito ao voto e o início de um processo mais sistemático de implementação da legislação trabalhista, a situação dessas mulheres pouco mudou. 

Controlando a sexualidade feminina

A disciplinarização da força de trabalho é tratada sob uma perspectiva de gênero pela pesquisadora: a fábrica era um espaço social, político e de poder. As operárias eram empregadas em atividades que não exigiam grande especialização enquanto os homens exerciam funções com um grau maior de qualificação, como cargos de chefia, contramestres e gerência, posições superiores na hierarquia e com salários maiores.

O maior controle sobre as operárias era também uma tentativa de controlar sua sexualidade, uma vez que a entrada da força de trabalho feminino nas fábricas tornava-se cada vez mais intensa, inclusive sendo vista como uma concorrência ao emprego masculino.

Algumas leis regulamentando horários permitidos ao trabalho das mulheres (proibido entre 22 e 5h e descanso em caso de gravidez) pareceram conquistas, mas dificultaram a contratação de mulheres e incidiram sobre a vida privada, tentando resguardar a mulher e a família. Principalmente após a década de 1930, segundo a dissertação, “o Estado intensifica a valorização da capacidade reprodutora da mulher e seu papel de guardiã da moral familiar, através da intervenção na legislação do trabalho feminino e no atendimento à infância”. As leis acabavam por forjar uma representação simbólica da mulher como mãe, esposa e rainha do lar, “tanto a legislação como o operariado masculino, embasados pelo saber médico, esforçaram-se para preservar a ideia da mulher como um ser sem defesa e incapaz de se fazer forte nas lutas no interior do mundo do trabalho”.

Resistindo ao assédio nas fábricas

Carolina Barbosa Neder encontrou diversos processos abertos por operárias vítimas de crime sexual. Na tentativa de controlar também a vida privada das classes operárias, em especial o comportamento afetivo e sexual das mulheres trabalhadoras, o próprio Estado, através da justiça, intervinha diretamente ao estabelecer denúncias, prisões e forçar casamentos em se tratando de crimes de defloramento e estupro. “Tais tipos de delito eram denominados ‘crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias’ em consonância com a ideologia galgada em valores patriarcais e em defesa do modelo ideal da família burguesa, que veio a ser consolidado com o advento da República”.

No caso de ocorrência do crime sexual, a ação só poderia correr pelo meio público se a ofendida fosse menor de idade e não tivesse condições de mover a ação por meios próprios. Outro problema eram os procedimentos constrangedores necessários para provar a violência. “Numa análise sobre o processo aberto em 25/10/1919, pela operária têxtil Augusta Stefan, de 16 anos, por violência carnal e defloramento, é possível observar que ela teve que passar pelo exame de corpo de delito. Esse exame era perpassado por uma aura de violência contra a mulher, uma vez que essa teria seu corpo vasculhado, transformando seu ato de buscar justiça em momentos de humilhação”.

Segundo a autora, “nos processos pesquisados, é comum encontrar o advogado explanando, em defesa do réu, que, no ato de a operária sair sozinha para trabalhar, já havia o risco potencial de serem levantadas suspeitas quanto à sua conduta moral, pois estar sozinha implicaria necessariamente em estar fora da vigilância da família”. Além disso, “era usual checar a ficha policial da operária que fosse à justiça denunciar seu agressor por crime de estupro ou defloramento; se houvesse qualquer passagem pela polícia, o mais provável seria que ela perdesse o processo por não corresponder ao modelo de mulher moralmente correta e socialmente aceita”.

Nos casos de crimes contra a honra, a moça só teria alguma chance se em sua fala estivesse marcada a valorização da virgindade e do casamento. “No processo movido pela operária da Fábrica Mascarenhas, Maria da Conceição Fabiano, de 17 anos, no dia 18/10/1912, as testemunhas ouvidas são de fundamental importância para a prisão do acusado de seu defloramento, Anacleto Gomes de Oliveira. Uma das testemunhas a favor da operária disse que conhecia a família e a própria moça: ‘(…) conhece a Eurico, Delminda e suas filhas, a saber, que são pessoas honestas e trabalhadoras. (…) Conhece a menor Maria e sabe e pode affirmar que ella era tida como menina honesta e donzella’. No interrogatório, a ofendida diz ter sido seduzida e que só manteve relação sexual com Anacleto porque esse lhe prometeu casamento, porém, logo após o ato consumado, ele fugiu”.

Muitas mulheres, por trabalharem, mantendo alguma independência, foram encaradas e tratadas como imorais e, assim, sua palavra nada valia. Um caso ilustrativo é da operária Ivonete Seixas, que em 03/11/1928 foi à justiça tentar ter sua honra reparada, acusando Joaquim Custódio da Silva de sedução e promessas de casamento, seguidas de rapto e violência carnal. Na defesa, Joaquim afirmou ter tido relações carnais com Ivonete duas vezes, porém não tendo sido ele o autor de seu defloramento, ela supostamente já teria perdido a virgindade. As testemunhas a favor da vítima eram colegas de Ivonete na fábrica onde trabalhava, todas as moças que, por serem também trabalhadoras, eram mal vistas pela justiça e pela sociedade. Era a palavra de mulheres operárias contra a de um homem. A justiça arquivou o processo. A operária saiu da posição de vítima para a de ré, acusada de ferir a reputação de Joaquim.

Não se enquadrando

Segundo a pesquisa, “de maneira geral, essas mulheres não se enquadravam nesse modelo de ‘comportamento próprio para mulheres’ que os esforços de ‘reajustamento social’ tentavam impor sobre elas. De acordo com os moldes preconizados pelas camadas dirigentes, as mulheres eram seres com características marcadas pelo recato, passividade e delicadeza, entendidas como próprias de sua ‘natureza’. Como era grande a sua participação no mundo do trabalho, as mulheres pobres geralmente não se adaptavam às características como submissão, fragilidade e delicadeza. Eram mulheres que trabalhavam muito, mantinham relacionamento próximo com outros homens, brigavam na rua e falavam palavrões, comportamentos que se afastavam, e muito, do estereótipo de sexo frágil”.

Carolina Neder concluiu que, apesar de todas as adversidades, as operárias denunciaram a violência, participaram de sindicatos, fizeram greves e expuseram a situação nos jornais. Enfim, lutaram para o reconhecimento do direito ao trabalho e à autonomia, sendo a história oral importante para resgatar essas memórias muitas vezes esquecidas devido ao não acesso das operárias à escrita, ao silêncio ao qual muitas vezes foram submetidas temerosas de perderem os empregos e a um sentimento de desvalorização de sua própria história.

É permitida a reprodução de conteúdo do site para fins não comerciais, desde que citada a fonte: Jornal Mulier – www.jornalmulier.com.br.

Deixe um comentário