Constância Lima Duarte – pesquisadora do CNPq e professora de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais

3 de março de 2013 Comente »
Constância Lima Duarte – pesquisadora do CNPq e professora de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais

Foto: Izabel Chumbinho

Jornal Mulier – Janeiro de 2012, Nº 96

Há inúmeras histórias que testemunham as dificuldades e as tentativas das mulheres portuguesas para serem consideradas escritoras e integrarem o cânone literário

Mulier – Quando e por que surgiu o interesse em pesquisar a literatura produzida por mulheres portuguesas?

Constância – Esta pesquisa, que resultou no “Dicionário de escritoras portuguesas: das origens à atualidade”, faz parte de um antigo projeto e teve início ainda em meados da década de 1980. Na época, eu era professora de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal, onde residia. Quando a pesquisa estava prestes a ser concluída, a vida se encarregou de afastar as pesquisadoras – uma se aposentou, outra foi morar em Lisboa, eu voltei para Belo Horizonte – e o trabalho foi deixado de lado. Alguns anos depois, nos reencontramos e decidimos retomar o projeto, atualizando dados e ampliando o número de autoras. Quanto ao interesse pela literatura produzida por mulheres, posso dizer que sempre fez parte da minha vida acadêmica, pois há muito busco conhecer (e divulgar) a história de nossa trajetória intelectual.

Mulier – Existem temáticas mais recorrentes nas obras das portuguesas?

Constância – Creio que não diferem muito das que aparecem nas obras de outras escritoras. Sempre tem as que falam de amor, de solidão, da amizade e de coisas da vida em geral, assim como sempre tem as mais engajadas, que verbalizam poeticamente desejos de justiça social, reivindicam uma condição de vida mais digna para as mulheres, e sonham com novos tempos.

Mulier – Em Portugal houve maior ou menor liberdade de expressão? Como as escritoras enfrentaram obstáculos para tornar pública sua escrita?

Constância – Se as portuguesas enfrentaram maiores obstáculos para entrar no meio literário, é porque começaram na vida pública bem antes das brasileiras. Lá, ainda no século XV, muitas já faziam poemas, compunham canções e desafiavam os trovadores durante os saraus da Corte, através de seus versos. A história intelectual da mulher portuguesa teve início, assim, bem antes da história da brasileira. Temos notícia, inclusive, de muitas aristocratas que se vestiam de homem para ter acesso a escolas de nível superior, como Públia Hortência de Castro (1548-1595), do século XVI, que frequentou assim a Universidade de Lisboa. Aliás, consta que Públia formou-se aos 17 anos em Filosofia e ficou conhecida como profunda conhecedora de Teologia, Filosofia e Direito Canônico, além de exímia poetisa. Também tem a história de Maria da Felicidade do Couto Browne (1797-1861?), a poetisa portuguesa que não chegou a publicar nenhum livro em vida porque teve seus manuscritos queimados, assim como sua biblioteca, por um filho ciumento. Os versos de sua autoria que são hoje conhecidos foram recolhidos de jornais e revistas literárias.

Há inúmeras outras histórias como estas que testemunham as dificuldades e as tentativas das mulheres portuguesas para serem consideradas escritoras e integrarem o cânone literário. Foi por isso que tantas utilizaram pseudônimos masculinos, para driblar a crítica e os leitores e, ao mesmo tempo, se protegerem da opinião pública. E existiram muitas filhas, mães, esposas e amantes que escreveram à sombra de grandes homens e foram sufocadas por essa sombra. As relações familiares, hierarquizadas e funcionais, não incentivavam o surgimento de outro escritor na família, principalmente se a concorrência vinha de uma mulher. Não é por acaso que de algumas só se sabe que foi “irmã de Balzac”, “esposa de Musset”, “noiva de Castro Alves”, e mal se conhecem seus nomes ou seus escritos.

Mulier – Poderia citar alguns nomes mais representativos abrangendo dos primórdios à atualidade?

Constância – Com certeza, e eles são muitos. Para começar lembro um caso das letras nacionais – Auta de Souza (1876-1901), a poetisa norte-rio-grandense do fim do século XIX. Além dos poemas que estão incluídos no livro “Horto”, houve outros publicados sob pseudônimos, inclusive masculinos, que sofreram a censura dos irmãos que não os consideram adequados à exposição pública. Consta que Auta de Souza foi noiva, e que esses poemas seriam de amor e inspirados no homem amado.

Na França temos o célebre caso de George Sand, cujo nome era Amandine Aurore Lucile Dupin, Baronesa de Dudevant, que precisou ocultar o ilustre sobrenome por exigência da família. No caso da irmã de Balzac – Laure Surville – sabe-se que ela dava temas para o irmão famoso e necessitado de atender ao apelo das editoras. Laure chegou a publicar alguns contos sob pseudônimo, como “Le voyage en Coucou”, depois reescrito por Balzac sob o título “Début dans la vie”.

A larga utilização de pseudônimos por parte das escritoras visava precisamente preservar a imagem e proteger seu círculo mais íntimo da pressão social, advinda da exposição pública. Havia uma “censura no ar”, uma oposição implícita contra a mulher que escrevesse. Daí muitas optarem por fazê-lo de forma camuflada, usando apenas as primeiras letras do nome, como Nísia Floresta, a pioneira do feminismo no Brasil e autora de “Direitos das mulheres e injustiça dos homens”, de 1832, que assinou parte de sua obra como N.F., N.F.B.A., ou B.A. E as irmãs Brontë, inicialmente conhecidas como “os irmãos Bell”, porque assinaram os primeiros livros, inclusive “Jane Eyre” e “O morro dos ventos uivantes”, como Currer, Ellis e Acton Bell.

Outro caso conhecido é o de T.S. Eliot. Ele teria incluído poemas de sua primeira esposa, a também escritora Vivien Haigh Eliot, em “The waste land”. Anos depois, já nome consagrado, Eliot internou a esposa em um manicômio, onde ela ficou até falecer em 1947, devido às suas “instabilidades emocionais”.

Também o anonimato foi a máscara perfeita para a invisibilidade, pois permitiu às mulheres escamotear o conflito que devia ser motivo de angústia para muitas: proteger-se e ter vida privada, ou assinar uma obra e expor-se pela publicação de suas ideias. Entre o ideal feminino e a imagem de artista havia, nesses tempos, uma incompatibilidade quase inconciliável. Virgínia Woolf sugere, inclusive, que muitos daqueles “Anônimos” que escreveram tantos poemas, romances e novelas antigamente devem ter sido, na verdade, “Anônimas”, no feminino, o que bem pode ser possível.

Mulier – Como Brasil e Portugal trabalham o resgate da memória de suas escritoras?

Constância – Desde a década de 1970, surgiu, tanto lá como aqui, uma movimentação de pesquisadoras empenhadas em promover o resgate de antigas escritoras. Assim, de forma quase articulada, dezenas de pesquisas brotaram nas mais diferentes instituições de ensino superior trazendo à tona novos/antigos nomes e novas/antigas obras. Se hoje a literatura brasileira e a literatura portuguesa estão mais conhecidas em sua extensão, deve-se com certeza a este empenho a que me referi, fruto direto do movimento feminista.

Mulier – Como o meio acadêmico e a sociedade portuguesa receberam o trabalho de pesquisa realizado por vocês?

Constância – Não ouso dizer que as pesquisas que visam a revisão do cânone literário sejam sempre bem recebidas no meio acadêmico, seja no Brasil ou em Portugal. Há sempre quem as considere desnecessárias ou veja com desconfiança o surgimento de tantos nomes desconhecidos. Muitos chegam a dizer, inclusive, que se estavam no limbo é porque não tinham valor. E isso, sabemos, nem sempre é verdade.

Basta conhecer a história das mulheres para sabermos das dificuldades que as escritoras (e as artistas em geral) enfrentaram nos séculos passados e até nas primeiras décadas deste, para se imporem numa sociedade que se recusava a aceitar a concorrência feminina, em qualquer de seus domínios. As relações entre os sexos eram, antes de tudo e sem sombra de dúvida, relações de poder, e marcaram de forma inequívoca a história social e cultural de um povo. Não se admitia à mulher qualquer iniciativa que lhe permitisse escapar do estreito círculo a que estava confinada. Os espartilhos do preconceito teimavam em mantê-la bem segura e dentro dos limites do espaço doméstico. Na virada do século XIX para o XX, as mulheres casadas sequer podiam dispor do próprio dinheiro, opinar na criação dos filhos ou muito menos mover uma ação contra o marido. O direito ao voto, lembro, só foi alcançado a nível nacional em 1932, após muita resistência dos que achavam que não era atribuição feminina preocupar-se com os destinos da nação.

E se conhecemos as condições de vida da grande maioria das mulheres nos séculos passados, os obstáculos que enfrentaram – das teses médicas “provando” sua incapacidade intelectual, ao reforço dos filósofos e governantes incentivando o recolhimento – não podemos nos admirar do reduzido número de escritoras hoje conhecido. A interiorização de normas morais e da culpabilidade com certeza deve ter impedido a muitas se dedicarem à literatura. Hoje sabemos que as medidas protecionistas em torno da mulher visavam mantê-las, a qualquer custo, fora do mundo do trabalho, cuidando unicamente dos filhos e do lar.

Para concluir, queria ainda dizer que, se pretendemos interferir no estabelecido é preciso ir um pouco mais além do que cada uma continuar trabalhando isoladamente, estudando autoras e repetindo que o cânone é reflexo do patriarcalismo. É preciso, tendo em vista que a universidade hoje é a responsável pela reinterpretação e revisão da história literária, até porque concentra em seus quadros pesquisadoras(res) interessadas(os) em reescrevê-la, que comecemos por nos unir em torno de grandes projetos de pesquisa; participemos conscientemente da revisão dos currículos dos Cursos de Letras; estudemos em classe as autoras recém descobertas; enfim, incentivemos este tipo de pesquisa entre os alunas(os). Só assim estaremos contribuindo realmente para a transformação que tanto desejamos.

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