Carla Gisele Batista – pesquisadora e militante do Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM – Brasil)

22 de abril de 2015 2 Comentários »
Carla Gisele Batista – pesquisadora e militante do Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM – Brasil)

Jornal Mulier – Setembro de 2014, Nº 128

Para pesquisadora, a ação feminista é valiosa na luta contra setores conservadores da sociedade

Mulier – Carla, gostaria de pedir que falasse sobre você, sobre suas origens e formação.

Carla Gisele Batista – Sou natural de Brasília, mas minha aproximação com o movimento feminista começou em Recife, onde vivi por 23 anos e trabalhei 17 destes no SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia. Fui ativista do Fórum de Mulheres de Pernambuco e da Articulação de Mulheres Brasileiras.

Vim para Salvador fazer o mestrado em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismo no Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher na Universidade Federal da Bahia (NEIM/UFBA). Continuo por aqui, trabalhando com as questões ligadas aos direitos humanos das mulheres. Neste ano estou fazendo uma consultoria para o Ministério Público da Bahia. Organizo oficinas sobre violência contra as mulheres nos municípios onde existem delegacias de atendimento à mulher e, entre outras coisas, sou militante do Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM – Brasil).

Mulier – Quando e por que surgiu seu interesse em pesquisar gênero?

Carla – Desde o início do meu trabalho no SOS Corpo, em 1993, tenho atuado como educadora, ativista e pesquisadora. Cada uma destas atividades alimenta e provoca a outra. No mestrado, dediquei-me a estudar a ação feminista pela legalização do aborto no Brasil, tendo como foco as I e II Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres.

Na primeira delas (2004), a proposta aprovada levou o governo Lula a criar uma Comissão Tripartite para elaborar um projeto de revisão da legislação punitiva ao aborto no país. No entanto, com o escândalo do mensalão – provocado não apenas para denunciar compra de votos e apoio – há um rearranjo partidário do governo, onde várias demandas apresentadas pelos movimentos sociais e assimiladas inicialmente pela gestão petista são interrompidas.

Se observarmos o Ministério da Saúde, no início do governo Lula sob a liderança do PT, as propostas anunciadas para implementação e, posteriormente, a chegada do novo ministro do PMDB, podemos avaliar os efeitos do presidencialismo de coalizão em restrição às políticas que responderiam a demandas dos movimentos de mulheres, feministas e também LGBTTs.

Na II Conferência, com o primeiro escalão do governo “cotizado” entre as forças políticas nacionais, as demandas sobre o tema foram respondidas com silêncios e recuos, que têm aumentado a cada ano. Isto contribui para que setores religiosos conservadores se apropriem cada vez mais do capital político destes movimentos, de forma negativa e restritiva aos direitos por eles reivindicados, avançando no seu projeto de poder em detrimento dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos.

Mulier – Recentemente você realizou uma pesquisa mapeando o conservadorismo no Brasil. Qual motivo a levou a interessar-se pelo tema?

Carla – A minha aproximação do tema está relacionada à minha militância – nos últimos 20 anos – em defesa da legalização do aborto e dos direitos sexuais e reprodutivos. Sempre deparando com setores da sociedade que se contrapõem aos direitos das mulheres de forma geral. Isto levou a que estivesse atenta aos movimentos realizados nesta contraposição. Em muitos momentos de ativismo e do trabalho educativo, tive que lidar concretamente com estes opositores. O trabalho foi realizado em parceria com Márcia Laranjeira, que é da área de comunicação e pesquisa sobre movimentos sociais.

Mulier – Para você, o que desencadeia esta onda neoconservadora ou de direita?

Carla – Há pessoas que dizem que a onda surge como uma contraposição aos avanços alcançados não só pelos movimentos sociais e suas demandas, mas pela forma como as pessoas vivem suas vidas, influenciadas e influenciando estas movimentações com propósitos libertários e de radicalização democrática. Esta onda, que chamaria de contrária (já que no feminismo nos referimos às suas diversas ondas), não sei se tenho capacidade para delimitar sua origem. O conservadorismo é historicamente presente. No entanto, agora ele se renova, com força, com poder de várias ordens: financeiro, para captar ou impor adesão, disseminar ideias, reforçar posturas xenofóbicas, racistas, sexistas, homo e lesbofóbicas agressivamente.

Mulier – O que é a pesquisa e quais os objetivos da mesma?

Carla – Esta pesquisa é sobre a ação de grupos conservadores no Brasil. Ela nos foi solicitada pelas Católicas pelo Direito de Decidir. Foi realizada na internet, com o objetivo de mapear características, modos de organização, objetivos políticos e estratégias de grupos, instituições e movimentos que se auto-denominam “pró-vida” ou “pela vida”. É um trabalho exploratório, porque foi feito num espaço muito curto de tempo. Trabalhamos 15 dias levantando informações, inclusive localizando trabalhos já existentes sobre o tema e tivemos um mês para analisar e escrever.

O trabalho completo será publicado em setembro, mas já recebeu uma versão sintética no “Caderno Católicas: A presença das Mulheres nos Espaços de Poder e Decisão”. Foi difícil colocar um ponto final no levantamento, porque a cada endereço virtual consultado encontrávamos uma série de outros relacionados que mereciam o nosso olhar. Mas o que chama a atenção é a forma como exploram este universo virtual para propagar ideias e convocar à adesão.

Mulier – Como os grupos se articulam e quais são as formas mais utilizadas para propagar suas ideias?

Carla – O objeto do nosso levantamento foi o de verificar o uso da comunicação como estratégia de ação política nos espaços de poder institucional e no cotidiano. Com ele constatamos o uso convergente de mídias diversas para a reprodução de ideias e para a mobilização, com o objetivo de mudar ou consolidar subjetividades individuais e coletivas e também constatamos a força dada às comunidades virtuais. As ideias e posicionamentos propagados se referem à defesa da vida desde a concepção até a extinção natural, o que inclui o repúdio ao aborto, à eutanásia, a qualquer forma de contracepção, à fertilização in vitro e à defesa da família e do casamento nos seus moldes tradicionais. Outros temas aparecem, mas não são comuns, como a pedofilia, a prostituição e até a violência contra as mulheres.

Entre as formas de capilarização está também a oferta de serviços sociais, que contam muitas vezes com recursos do próprio Estado. Este é um tema que exige um estudo mais aprofundado. Encontramos também os serviços para conversão de homossexuais, para aconselhamento a mulheres grávidas, estes últimos ligados às arquidioceses em Goiás e no Rio de Janeiro.

A questão da laicidade do Estado é completamente relegada a partir de propósito declarado de ocupação de poder. O Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política – FENASP, por exemplo, incentiva a participação da igreja na política. Compreende a política como “um instrumento de propagação do reino de Deus no Brasil”. No campo jurídico, não só o propósito de modificação das leis e criação de jurisprudência é estimulado, também a defesa de que textos religiosos podem influenciar sentenças. Muito mais poderia ser citado.

Mulier – E no contexto internacional, como vê esta realidade neoconservadora?

Carla – É importante reconhecer que esta incidência não é tão recente. Alguns processos se destacam para que esta onda conservadora esteja se ampliando a partir de articulação global. No final da década de 1970, podemos citar o desmantelamento das doutrinas progressistas pelo Papa João Paulo II e o revivalismo islâmico promovido pelo Aiatolá Khomeini. O investimento de governos republicanos dos EUA, em especial George Bush Jr., tanto em fortalecer movimentos fundamentalistas como em minar a capacidade de ação de organizações que se pautam pela defesa dos direitos sexuais e direitos reprodutivos. A ampliação das igrejas evangélicas de cunho neopentecostal em diversos países.

São vários os fatores que confluem para a situação atual, reforçados em contextos nacionais de exclusão social e violência. As igrejas, no cotidiano, são vistas como tábua de salvação diante das inseguranças e vulnerabilidades.

A comunicação, através do uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs), amplifica a capacidade de organização em redes e trocas de informações. Projetos de lei, argumentos, materiais educativos são elaborados em um país e circulam sem fronteiras, como incentivo à propagação destes ideais e propósitos conservadores em cadeia.

Podemos citar como exemplo o debate sobre educação e a ideologia de gênero. Ao mesmo tempo em que influenciou a votação do Plano Nacional de Educação no Brasil, estava evidente, na França, onde se defendia a educação familiar, num movimento contra a escola pública e a retirada de todos os livros com menção a gênero das bibliotecas. Imagine! Isto é assustador, além de ser mais condizente com a Idade Média do que com os dias atuais.

Mulier – De que maneira o conservadorismo atuou na aprovação do texto do Plano Nacional de Educação (PNE) sob a perspectiva de gênero?

Carla – Os materiais produzidos para mobilização virtual contrárias à diretriz que propunha superação das desigualdades educacionais “com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” se inspiraram na obra da norte-americana Dale O’Leary, “The Gender Agenda”, a partir de uma tradução, ou fragmentos, ou adaptações, amplamente divulgadas sob o título “A Ideologia de Gênero”.

Concomitantemente parlamentares conservadores negociavam a exclusão desta diretriz do documento do PNE em debate no Congresso Nacional. Foi feita uma ampla mobilização virtual para estimular o envio de cartas e mensagens a parlamentares, de artigos e cartas aos meios de comunicação, viralizar posicionamentos em redes sociais para além da utilização de púlpitos, programas em rádios e TVs com este mesmo objetivo. Foi estimulado ainda imprimir o documento e levar aos professores de seus filhos e conversar com eles a respeito, além das expressões de desacordo com o programa “Gênero e Diversidade na Escola”, promovido pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. E, como sabemos, o resultado final desta mobilização foi favorável aos contrários.

Mulier – Há ameaça de retrocessos com relação a direitos conquistados pelas mulheres em função da atuação desses grupos? Caso sua resposta seja positiva, como as mulheres podem melhor se articular e lutar para que isso não aconteça?

Carla – Estes retrocessos já vêm acontecendo. Aliás, os recuos se fazem sentir nos números de pessoas contaminadas pelo HIV/AIDS, das mulheres que morrem por interromper uma gravidez (mesmo nos casos em que o aborto está legalizado), nos números alarmantes da violência contra as mulheres e da morte de jovens negros, só para citar alguns exemplos mais drásticos.

No momento atual, é fundamental a atenção às candidaturas e trabalhar por aquelas que possuam propósitos afins e levem em consideração a soberania dos movimentos sociais de esquerda. De forma mais permanente, consolidar alianças com outros movimentos deste campo e que mantenham na pauta os debates sobre a defesa da democracia – o que inclui a garantia da laicidade do Estado, dos direitos humanos – para ações coletivas de maior impacto e, muito importante: fortalecer os espaços de organização das mulheres. A ação feminista é valiosa na luta contra estes setores conservadores da sociedade. Não é à toa que o feminismo é o inimigo declarado.

É permitida a reprodução de conteúdo do site para fins não comerciais, desde que citada a fonte: Jornal Mulier – www.jornalmulier.com.br.

2 Comentários

  1. Juliete Pias de oliveira maio 22, 2015 at 1:25 - Reply

    Mulher inteligente desde sempre. Amiga querida
    de infância. Orgulho de ser sua amiga! Parabéns pela coerência e lucidez. Precisamos de mais Carlas no mundo.

  2. Maria Lindomar maio 22, 2015 at 1:49 - Reply

    Parabéns Carla!! Excelente entrevista. Sucesso!

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