Brasil lembra o centenário de nascimento da escritora Carolina Maria de Jesus

8 de abril de 2015 Comente »
Brasil lembra o centenário de nascimento da escritora Carolina Maria de Jesus

Jornal Mulier – Março de 2014, Nº 122

Carolina Maria de Jesus tem seu espaço na literatura brasileira por sua originalidade e quebra do cânone, embora seja pouco reconhecida

Comemora-se este mês de março o centenário de nascimento da escritora Carolina Maria de  Jesus. Talvez muitas e muitos não a conheçam, mas sua vida daria um livro, como de fato aconteceu, escrito pela própria Carolina, “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”, fenômeno editorial lançado em 1960, vendendo dez mil exemplares em apenas um mês, equiparando-se em vendas a Jorge Amado no prazo de um ano, posteriormente editado em quarenta países e treze línguas, contabilizando mais de um milhão de exemplares vendidos até hoje.

Carolina Maria de Jesus nasceu em 14 de março de 1914 na pequena cidade de Sacramento, perto de Araxá e da Serra da Canastra no Triângulo Mineiro. Mulher negra, de família humilde, estudou apenas dois anos por ajuda de uma senhora filantropa da cidade, de quem ela e a mãe eram lavadeira. Matriculada em um colégio particular, aprendeu a ler e escrever, não o suficiente para ser considerada alfabetizada, porque precisou deixar os estudos e seguir a mãe em busca de melhores condições de vida em outras cidades.

A mãe ficou pelo caminho, Carolina chegou a São Paulo em 1947, indo morar em uma favela à beira do rio Tietê, a Canindé, e sobreviveu principalmente como catadora de lixo. No barraco onde morava, guardava papéis, cadernos usados, livros, jornais, revistas, local onde lia e escrevia sob um lampião a gás.

É especialmente sobre essa nova fase da vida de Carolina que conta o livro “Quarto de Despejo”: as dificuldades enfrentadas para sobreviver em meio tão adverso e a convivência com a vizinhança. O interesse pelo assunto aconteceu em função do agitado momento vivido pela sociedade brasileira: inflação alta, greves e passeatas estudantis, sindicais, reivindicações urbanas e camponesas, a renúncia de Jânio Quadros, o medo da “ameaça comunista”.

Foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas durante uma reportagem sobre a favela Canindé. Até então, a favela era um fenômeno relativamente novo na arquitetura urbana da cidade. O objetivo era passar uma semana no lugar para conhecer a realidade dos moradores, mas a história que procurava já estava pronta quando Audálio conheceu Carolina no local. “A história que eu buscava já estava escrita com furor, revolta e às vezes até com lirismo, em mais de vinte cadernos encardidos, pela favelada Carolina Maria de Jesus. Era um diário em que ela contava a sua e a miséria dos demais que ali viviam. O meu projeto de escrever uma reportagem que mostrasse a favela ‘por dentro’ terminava ali. De meu, na reportagem, só o texto de abertura, de introdução ao tema que ficou por conta de Carolina. A reportagem reproduzia trechos de seu diário”, explica Dantas em depoimento publicado no livro “Carolina Maria de Jesus: uma escritora improvável”, do historiador, professor e escritor Joel Rufino dos Santos.

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Uma segunda reportagem sobre o diário foi publicada quatro anos depois, em 1959, quando Audálio Dantas transferiu-se para a revista “O Cruzeiro”, a mais importante do Brasil à época. A repercussão foi grande, e o diário foi editado em forma de livro em 1960. O título, “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”, foi extraído da frase do diário: “A favela é o quarto de despejo da sociedade”. O sucesso foi imediato em todo o Brasil e no exterior, inclusive pautando veículos de comunicação internacionais como “Paris Match”, “Le Monde” e “Time Life”.

Embora com inúmeros erros de grafia e acentuação, corrigidos ao mínimo nas edições, apenas quando se fez necessário um melhor entendimento do texto, o livro de Carolina foi importante por retratar uma realidade desconhecida pela maioria da população, mas também descortinou um talento literário.

Conforme Dantas, “repórter algum, escritor algum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela (…) com pouco tempo de escola, apenas dois anos de primário, em Sacramento, Minas Gerais, Carolina podia tropeçar na ortografia, escorregar na concordância e na pontuação, mas construía uma narrativa forte, densa, um retrato sem retoque da dura vida favelada. A fome, personagem principal, aparecia no texto com uma frequência irritante, inarredável. Tinha até cor, na escrita de Carolina. As coisas do mundo – o céu, as árvores, as pessoas, os bichos – ficavam amarelas quando a fome atingia o limite do insuportável.”

Importância literária

Joel Rufino dos Santos, que escreveu sobre Carolina Maria de Jesus, afirma que Carolina até hoje não teve lugar na história de nossa literatura, embora seja admirável ter produzido uma obra grande – cerca de cinco mil manuscritos, de anotações a romances – com domínio tão pequeno da norma culta. “Lido sem preconceito, o primeiro livro da catadora de lixo revela,  às primeiras linhas, talento literário, não do tipo ‘minha vida daria um livro’, mas a habilidade de fazer brilhar o que em si mesmo é insosso”, assegura.

Uma das características citadas pelo autor como manifestação do talento dela é o poder de descrição. A autora era capaz de criar imagens poéticas, mesmo se errasse na concordância nominal (falha comum, ressalta Santos, também de pessoas instruídas). Era capaz de criar belas imagens, a exemplo do trecho descritivo de uma festa de políticos em que haveria distribuição de brindes para pobres. “Todos usavam roupas humildes. Alguns calçados outros descalços. Apareceu um preto alto e gordo como se fosse descendente de elefante.”

O ritmo também é citado como característica da autora, conforme o trecho: “chegou o carro para levar a filha da Leila. Ela começou a chorar. Assim que a criança saiu a Leila foi beber. O que fico admirada é das almas da favela. Bebe, porque estão alegres. E bebem porque estão tristes. A bebida aqui é um paliativo. Nas épocas funestas e nas alegrias.” Mais uma virtude da autora é a concisão: “Não sei qual é o desgraçado que entra no barracão para roubar. Porque sumiu a minha machadinha”.

Ascensão e queda

Com o sucesso do livro e reportagens sobre sua vida, Carolina Maria de Jesus viajou o Brasil e outros países, tornou-se ícone de rapazes e moças entre 17 e 30 anos, principalmente líderes estudantis, jornalistas, militantes de esquerda, críticos da realidade das mazelas sociais das quais Carolina era representante. No entanto, do estrelato ao esquecimento, poucos anos se passaram. Três motivos principais podem ser enumerados para explicar a fugacidade.

Primeiramente, era considerada pouco politicamente correta, embora escrevesse sobre as mazelas sociais dela e da comunidade onde residia, da pobreza e da fome em geral. Dessa forma, para muitos era uma alienada, explica Joel Rufino dos Santos. “Ela se colocava quase sempre do lado contrário ao da sua condição de mulher negra favelada e, ao mesmo tempo, foi autônoma com relação ao mundo em que viveu – e, neste sentido, se alienou do seu mundo que não comportava o ofício de escritor”.

Seu excesso de altivez incomodava pessoas semelhantes, da mesma classe social. Na favela, ela evitava misturar-se aos vizinhos assim como procurava não deixar os filhos terem contato. Era uma relação de convivência hostil: ela os desprezava e eles a detestavam. “Para a sociedade que a cortejou, fascinada, Carolina representava os pobres, mas o fascínio acabou quando viram ser uma ‘pobre soberba’. Já para os pobres que a rejeitavam, desde sempre, sua literatura em nada serviu”, explica Santos.

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Para o autor, “sua intuição rala da engrenagem social se cristalizou num egocentrismo prosaico, antipático, pretensioso.” Quando começou a politizar-se mais em relação à sua condição social, racial e de gênero, precisou defender-se da pecha de comunista, recaída nos ombros de quem exaltava reformas sociais. Defendeu a reforma agrária como possibilidade de amenizar a pobreza nas grandes cidades e sentiu na pele o racismo e o sexismo, tendo peças de teatro não aceitas por ser de autoria de uma mulher negra, ainda por cima pobre e semi-alfabetizada.

Outro motivo desfavorável foi o momento político pouco propício em que sua obra passou a ser conhecida, praticamente coincidente com o Golpe Civil-Militar de 1964, instaurando uma ditadura civil-militar que durou mais de 20 anos. A estética da pobreza e a quebra do mito da democracia racial não eram mais interessantes a um regime que exaltava o Brasil, do “Ame ou deixe-o”.

Segundo Santos, “a esquerda que apresentou Carolina ao país, composta basicamente de estudantes, jornalistas, líderes sindicais e artistas, foi afastada de cena. Ocupada em se defender e, depois de 1969, lutar pela redemocratização e o socialismo, esqueceu a escritora da Canindé”.

Ao rasgar máscaras sociais, mostrando a desunião e os preconceitos dos pobres com eles mesmos, os defeitos da sociedade brasileira, era quase zero a chance de manter-se famosa. “Sua visão da favela era de dentro, a esquerda preferiu a de Sérgio Ricardo e Tom Jobim/Vinícius que cantavam a felicidade do pobre e sua redenção futura. A literatura de Carolina seria de direita: preconceituosa, idealista, sem redenção. Não servia à ditadura, nem aos seus inimigos”.

Por fim, Carolina Maria de Jesus não obedecia aos cânones literários. De acordo com Conceição Flores, professora do curso de Letras da Universidade Potiguar, em Natal, doutora em História da Educação, em entrevista ao Jornal Mulier, perguntada se a fugacidade da obra de Carolina tem relação com o preconceito, afirma que ele existe: “e se manifesta em pessoas que rezam a cartilha do cânone, que defendem uma literatura branca, da elite e feita por homens.”

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Os últimos momentos de fama foram vividos em 1963. Três anos depois, voltou a catar papel. Juntou as economias que sobraram e comprou um pequeno sítio em Parelheiros, onde viveu sozinha até 1977, quando morreu aos 68 anos.

Mas a literatura de Carolina Maria de Jesus continua viva, até porque sua produção compreende mais de cinco mil páginas, entre cadernos, poemas, contos, romances, peças de teatro, tudo microfilmado na Biblioteca Nacional, fora inúmeras caixas de papéis avulsos guardadas pela filha, a maioria de todo esse material é inédita.
Sem dúvida, Carolina contribui para nossa literatura, acredita Conceição Flores. “É a rasura do cânone, a inclusão de uma voz de alteridade na literatura brasileira.

Mulher, negra e pobre, que amava ler. A sua obra desmistifica o viés elitista da literatura e faz com que se lance o olhar sobre os excluídos.” Internacionalmente, a professora ressalta que a obra de Carolina continua a ser lida e estudada em diversas universidades, como nos Estados Unidos, em Portugal e na Itália. Joel Rufino dos Santos também afirmou ao Mulier a importância da obra de Carolina para a literatura brasileira porque, até recentemente, “era um caso único de interpelação do cânone, sendo, portanto, original.”

Sobre o centenário da autora, Santos é cético em relação à possibilidade de haver uma discussão qualificada sobre Carolina Maria de Jesus: “se houver, será um pouco surpreendente para mim. Vamos torcer”.

Posição diferente tem a professora Conceição Flores. Para ela, o centenário deu novo alento aos estudos, surgindo diversas teses e trabalhos sobre a autora. Além de eventos programados em diversas instituições acadêmicas, a exemplo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na Universidade de Lisboa e na Universidade Potiguar. No VI Colóquio Mulheres em Letras, na Faculdade de Letras da UFMG, em abril, organizado pela professora Constância Lima Duarte, haverá quatro mesas e uma conferência sobre Carolina. No último dia 5 de março, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi organizado pela professora Inocência Mata a conferência “Além das margens: Quarto de despejo, diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus”, proferida pelo professor Roberto Francavilla, da Universidade de Gênova, Itália. E, no dia 10 de março, em Natal, a XIII Semana Mulher e Poesia da Universidade Potiguar, coordenado pela própria Conceição Flores, também homenageou Carolina Maria de Jesus. “Provavelmente, outras universidades estarão assinalando a efeméride”, acredita Flores.

Livros publicados de Carolina Maria de Jesus

“Quarto de despejo: diário de uma favelada” (1960)
“Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada” (1961)
“Provérbios” (sem data)
“Pedaços da fome” (1963)
“Diários de Bitita” póstumo (1982)

Fonte

Santos, Joel Rufino dos. “Carolina Maria de Jesus: uma escritora improvável”. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

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