Antigos e novos problemas são desafios constantes à saúde da mulher

2 de março de 2013 Comente »
Antigos e novos problemas são desafios constantes à saúde da mulher

Imagem: Estudo para Vénus Anadiomena, Jean-Dominique Ingres, cerca de 1840 – Reprodução

Jornal Mulier – Setembro de 2007, Nº 44

A saúde da mulher brasileira vem passando por uma série de novos desafios, resultado de um novo estilo de vida adotado pela população feminina nas últimas décadas. Se nos anos 30 do século XX a expectativa de vida não chegava aos 40 anos, hoje a mulher vive, em média, 74 anos e conta com uma infinidade de meios para se informar sobre qualidade de vida, além de inúmeros tratamentos que previnem e curam doenças. Entretanto, ainda pesa sobre a mulher uma visão distorcida sobre o seu corpo, por séculos visto como fonte de instabilidade e problemas.

Essa história remonta aos primórdios da colonização portuguesa. Como afirma a historiadora Mary Del Priore, neste período a doença nada mais era que um justo castigo por infrações e infidelidades dos seres humanos, ideias concebidas devido à forte influência da Igreja Católica. Doença e culpa se misturavam, e o corpo feminino era visto por médicos e pregadores como um palco nebuloso e obscuro onde Deus e o Diabo se digladiavam. Segundo Del Priore, tais preconceitos eram uma forma de tentar entender o que a própria Medicina desconhecia, gerando um certo ódio e desconfiança em relação às funções do corpo da mulher.

Neste ambiente de crenças e mistérios, cabia às próprias mulheres a responsabilidade pela cura. As benzedeiras, curandeiras e parteiras eram importantes para a confecção de remédios à base de ervas e rezas para curar as mazelas. Também eram as substitutas dos médicos, que dificilmente chegavam aos confins da Colônia. Logo, essas primeiras médicas, que conheciam e tratavam doenças femininas, também foram vítimas de intolerância de autoridades e da Igreja pelo prestígio adquirido, sendo acusadas de feitiçaria e bruxaria.

O médico homem começa a lidar com a saúde feminina para tentar aplicar seus conhecimentos científicos em uma fase crucial para a vida da mulher: o parto, momento em que eram mais comuns as complicações de saúde. As parteiras recorriam aos médicos quando o parto era complicado, quando sangramentos e hemorragias costumavam levar a mãe a tal esgotamento que causava a sua morte. Mary Del Priore afirma que as grandes hemorragias não tinham solução, e as mulheres morriam em minutos diante dos médicos abestalhados frente ao fenômeno da eclampsia, com a mulher tendo convulsões e espasmos uterinos.

Frente a essa realidade, concebeu-se a ideia do útero como causador de uma série de doenças, que iam da loucura à ninfomania. A mulher não deveria contrariar as funções reprodutivas, de parir e procriar, exercendo com isso adequadamente seus sentimentos de amor, sendo fonte de fragilidade e submissão. Era a naturalização da maternidade como fim último e necessário para a vida e a saúde da mulher.

O corpo feminino só começa a deixar de ser mistério e desconhecimento com os avanços científicos dos séculos XVIII e XIX, quando foram lançados vários tratados e manuais médicos, tentando explicar a anatomia e a fisiologia femininas. As doenças e suas terapias foram classificadas, sendo prescritas condutas de higiene. Mesmo assim, ainda havia a ideia da necessidade de regulamentação do corpo feminino, considerado mais frágil, facilmente influenciado por qualquer motivação emocional, pela visão, tato, e outros, segundo a historiadora Ana Paula Vosne Martins, no livro “Visões do feminino, a medicina da mulher nos séculos XIX e XX”.

Essa relação entre doença e sexualidade e o uso que se faz do corpo feminino ainda são fonte de preconceito e de doença para a mulher brasileira. O desconhecimento do próprio corpo é comum e lembra os casos em que maridos examinavam as esposas enfermas e davam informações para os medidos, evitando assim apalpações desnecessárias. Era a prática das “enformações”, comuns no século XIX, segundo a professora na Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rita de Cássia Marques, em artigo na revista “Nossa História”. Os maridos redigiam cartas endereçadas aos clínicos, nem sempre próximos, explicando o que se passava com a paciente. A situação só mudou com as primeiras médicas, que acabavam sendo, também, uma espécie de psicólogas para as mulheres recebidas em seus consultórios.

Como se vê, são questões culturais que demandam tempo para se modificar. Assim, pode-se entender o motivo de ainda tantas mulheres morrerem em pleno século XXI no Brasil durante o parto ou de doenças evitáveis, como câncer de colo de útero e AIDS. Segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo, cerca de 65% das brasileiras não usam qualquer método de proteção a doenças de contato sexual, principalmente porque acreditam na fidelidade do parceiro (42%).

Diante disso, não surpreende o aumento do número de casos de HIV/AIDS entre as mulheres nas últimas décadas, nem doenças como câncer de colo de útero, causadas principalmente por vírus contraídos facilmente por meio de relações sexuais desprotegidas. O aborto é outra causa de incapacitação, morte e trauma para a mulher. Diante de um quadro de pouca disponibilidade de métodos contraceptivos, como camisinha e pílulas nos postos de saúde de vários municípios, pelo constrangimento em se falar sobre sexualidade com o parceiro e a falta de autonomia sobre o próprio corpo, calcula-se em 1 milhão o número de abortos clandestinos realizados no país todos os anos. Esta relação entre doença e sexualidade mostra que o corpo feminino mal entendido e visto como problema acaba realmente sendo vítima de enfermidade.

O corpo da mulher tem as suas características próprias, mas elas não são necessariamente fontes de problemas. A questão é cultural e política. As políticas públicas sobre saúde da mulher se intensificaram a partir do início da década de 1980. Em 1983, foi criado o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Ele definiu a saúde como resultado não só do atendimento médico, mas de políticas sociais, como emprego, habitação e educação. Com a Constituição Federal de 1988, foi oficializado o Sistema Único de Saúde (SUS), que estabelece como responsabilidade do Estado e direito das pessoas o atendimento integral à saúde, de acesso universal, com qualidade, de caráter preventivo e curativo, sem cobrança. Foram avanços que tentaram resgatar o que os movimentos de mulheres queriam: a autoestima e o poder das mulheres sobre o próprio corpo a partir da divulgação e de apropriação do conhecimento. Também houve a preocupação com a saúde reprodutiva atrelada à sexualidade e ao direito ao prazer, além da exigência de melhor atendimento médico.

As políticas neoliberais da década de 1990 dificultaram a execução adequada desses planos devido à contenção de despesas públicas. Mas, diante do quadro de degradação social e da realização de inúmeras conferências internacionais e o comprometimento com diversos tratados sobre saúde da mulher, a preocupação do Estado tem surtido resultados interessantes. Entre eles, está a elaboração do I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, elaborado em 2004. Nele, há diversas ações como a garantia de direitos sexuais e reprodutivos com medidas de planejamento familiar, ampliação, qualificação e humanização à atenção integral no SUS e a meta de redução da mortalidade materna, de complicações por aborto e de casos de AIDS. Há ainda uma preocupação inédita com a saúde das mulheres presidiárias, indígenas, negras, com deficiência, idosas e trabalhadoras rurais e urbanas. São políticas públicas que, aos poucos, vêm sendo efetivadas até por cobrança dos movimentos sociais e que podem melhorar o bem-estar físico e mental, principalmente de parcela da população sem condições de arcar com altas mensalidades de planos de saúde privados.

Se, por um lado, o Brasil evoluiu ao evitar mortes por doenças infecto-parasitárias, aumentando a expectativa de vida, hoje surgem novos desafios. O envelhecimento da população e a intensificação dos fatores de risco contribuem para a disseminação do câncer. Fatores como tabagismo, consumo excessivo de gordura e álcool, sedentarismo e estresse são causadores de desordens orgânicas que desencadeiam câncer e outras doenças do sistema imunológico.

Vítima de estresse, causado por uma série de novos papéis sociais, tripla jornada de trabalho e novas exigências, a mulher é alvo fácil. As transformações do corpo para reagir ao estresse podem rapidamente excitar o coração, os pulmões e outros órgãos para nos preparar para reações de luta ou fuga de ameaças súbitas. Porém, ao enfrentarmos esse processo diariamente, podemos estar esgotando nosso corpo e nossa saúde. São novos desafios à saúde da mulher, uma maneira de rever hábitos, condutas e cuidados com ela mesma, uma forma de, mais do que nunca, ter conhecimento e poder sobre o que fazer com o próprio corpo, com a própria vida, agora que a população feminina alcança tantas conquistas sociais e políticas.

Fontes

BORBA, Ângela, FARIA, Nalu, GODINHO, Tatau (orgs.). “Mulher e política: gênero e feminismo no Partido dos Trabalhadores”. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998.

DEL PRIORE, Mary. “História das mulheres no Brasil”. São Paulo: Contexto, 1997.

MARTINS, Ana Paula Vosne. “Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX”. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.

VENTURI, Gustavo, RECAMÁN, Marisol, OLIVEIRA, Suely (orgs.). “A mulher brasileira nos espaços público e privado”. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004.

Revista “Mente e Cérebro”, nº 7.

Revista “Scientific American Brasil Ciência e Saúde Mulher Edição Especial”, nº 1

Revista “Nossa História”, nº 6, abril de 2004.

“Revista de História”, nº 15, dezembro de 2006.

“Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – Relatório de Implementação”. Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2006.

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